Os Painéis de cara lavada. Mas com coração limpo?

O Políptico de S. Vicente de Fora encontra-se em processo de restauro, que deverá estar concluído no final do ano. Mas quem aparece ali representado? Quando foram pintadas as tábuas? E para quê? Afinal, existem para estas questões respostas límpidas que muitos teimam em ignorar.

O restauro do Políptico de S. Vicente de Fora decorre no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) desde maio de 2020. Em abril último, Joaquim de Oliveira Caetano, diretor do museu desde 2019, assegurou que o processo de restauro estará concluído até 2024, registando um atraso importante mas compreensível devido a uma pandemia que entravou múltiplas diligências. A menor das quais não terá sido o intercâmbio com entidades museológicas internacionais, que programadamente iriam auxiliar o processo no MNAA.

Mas o assunto deste artigo – que constitui uma crítica contundente a Joaquim Caetano, fique desde logo explicitado – não incidirá sobre o atraso na conclusão do restauro. Tanto mais que o atraso será suplementarmente compreensível pelo melindre de se ter em mãos a peça maior atribuída a Nuno Gonçalves, pintura que é o verdadeiro florão do MNAA desde 1911, ano em que incorporou a coleção.

A crítica – que, em boa justiça, mereceria ser estendida ao conjunto dos quatro antecessores de Joaquim Caetano no cargo de diretor do MNNA desde o virar do século – incide antes sobre a falta de relevo concedido a dados verdadeiramente fundamentais para a problemática do Políptico de S. Vicente de Fora. Publicados desde 2000/2001 os seguintes dados deveriam ter sido tomados em consideração na exposição daquela pintura: a assinatura com as iniciais de Nuno Gonçalves, seguidas de a data de 1445; a análise dendrocronológica das tábuas de suporte, que tornaram plausível a data de 1445 e concomitantemente improvável a datação da pintura para a década de 1460 e a fortiori para a década de 1470, década que se mantém teimosamente na notícia explicativa facultada hoje pelo MNAA; a existência de um texto, entre outros de teor semelhante em compromissos de confrarias quatrocentistas, que tem uma aderência evidente à cena representada no Políptico de S. Vicente de Fora – sendo esta a figuração das exéquias do Infante Santo no período imediato à sua morte em 1443, quando o corpo deste príncipe permanecia insepulto em Fez. Existem, afinal, respostas límpidas para as questões ‘Quem, como, quando e porquê’, que os cultores do ‘Mistério dos Painéis’ nos perdoem tal ‘blasfémia’.

‘O que é passado é prólogo’:

a persistência da memória henriquina

Ora, são aquelas as quatro questões que deram o título a um longo artigo com destaque de capa surgido no E, a Revista do Expresso de 24 de junho de 2022. Nesse artigo, Christiana Martins e Miguel Cadete, os autores, a propósito de uma análise codicológica então recentemente efetuada na Biblioteca Nacional de França (BnF) à Crónica de Guiné de Gomes Eanes de Zurara e a propósito também do restauro em curso do Políptico de S. Vicente de Fora, interpelam repetidamente Joaquim Caetano. C. Martins e M. Cadete utilizaram como ‘gancho jornalístico’ a constatação, obtida da análise codicológica efetuada em Paris, que «o homem bigodudo de chapeirão é mesmo o infante D. Henrique», para depois não tirarem dessa constatação as devidas inferências, que são centrais para a problemática do Políptico de S. Vicente de Fora.

Os dois jornalistas tiveram a conivência mais responsável de Joaquim Caetano que, nas respostas às questões que lhe foram colocadas, se revela um verdadeiro mestre na dúvida sistemática, mas paralisante: todas as facetas da problemática suscitam ao diretor do MNAA um opressivo manto de interrogações que afastam qualquer esperança de um dia se darem respostas plausíveis às quatro questões que figuram no título do artigo em causa: ‘Quem, como, quando e porquê’. Ora, como atrás se afirmou, respostas plausíveis existem para as quatro questões.

Antes de elaborar sobre as respostas, considere-se uma página de texto publicado em 1909, no The Burlington Magazine, texto que vinha acompanhado da reprodução fotográfica dos Painéis antes de terem sido restaurados por Luciano Freire. O autor, Sir Herbert Cook, dava a conhecer ao público internacional aquelas tábuas, ainda então sem autor atribuído. O pragmatismo anglo-saxónico delineou uma abordagem racional para a investigação a empreender: «Muito pouco pode ser assegurado quanto à data em que estas esplêndidas pinturas foram executadas. A indumentária poderia indicar 1440-50 e se, como tem sido suposto, o retrato do Príncipe Henrique o Navegador aparece num dos grupos, esta data seria confirmada [em nota de rodapé: «[…] foi o quarto filho de João I, e viveu entre 1394 e 1460. Ele parece ter cerca de cinquenta anos de idade na pintura.»] A maior parte das personagens são claramente retratos, e não seria impossível a um historiador identificá-los.» Face à despretensiosa simplicidade de tais afirmações, quem poderia prever o grau de confusão destinado a inquinar a ‘Questão dos Painéis’ por mais de um século?

Voltemos ao homem de chapeirão, retratado na iluminura pertencente ao Códice de Zurara recentemente analisado em Paris, em 2022. António Candeias, diretor do Laboratório Hércules, laboratório associado ao atual processo de restauro do Políptico de S. Vicente de Fora e encarregado da análise do códice, assegura aos jornalistas do Expresso que o fólio com a iluminura é parte integral de um dos cadernos do códice (um dos octavos, com dezasseis páginas cada), «não podendo de forma alguma» ter sido introduzido posteriormente. Verificou-se que, nas palavras de Candeias, «o desenho subjacente não traz nenhuma imagem nova, é apenas preparatório do retrato definitivo. Não há ali nada de suspeito. Deixa de ser uma questão de fé e passa a ser uma questão de facto: o homem de chapéu preto é mesmo o infante D. Henrique». Que tem Caetano a comentar sobre esta promissora confirmação? Surpreendentemente, não muito: «O objetivo principal desta intervenção [sobre o Políptico de S. Vicente de Fora] não é debater a identidade das personagens, mas recuperar as pinturas.»

No entanto, a identificação inequívoca de D. Henrique no chamado Painel do Infante, pela via indireta, mas segura, da iluminura na BnF, é uma pedra angular para a compreensão de todo o políptico. E a boa compreensão deste só poderá auxiliar no seu bom restauro e futura exposição museológica, como adiante se verá.

Em História, e não menos em História da Arte, as datas são importantes. O códice da BnF recém-estudado é uma obra manuscrita coerente e íntegra, que reporta os feitos do infante D. Henrique e dos homens ao seu serviço na exploração e conquista da costa de África até ao ano de 1448. O manuscrito foi terminado na livraria de D. Afonso V em 18 de fevereiro de 1453 e dedicado cinco dias mais tarde ao monarca por Zurara, o seu autor, que era então guarda e conservador da livraria real e seria nomeado no ano seguinte sucessor de Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo.

Não surpreenderia que a iluminura fosse uma obra requisitada na livraria de D. Afonso V a Nuno Gonçalves, pintor régio desde 1450 e cuja atividade decorria no mesmo meio palatino lisboeta por aqueles anos. Natural, também, que o desenho preparatório anteriormente destinado ao Painel do Infante fosse reutilizado pelo próprio Gonçalves. A semelhança nos rostos quase implicaria ‘plágio’, caso o autor da iluminura fosse outro. Mas, acima de tudo, registe-se a boa mão revelada na iluminura. São atribuídas iluminuras de grande qualidade a Jan van Eyck e a Roger van der Weyden; Jean Fouquet é outro exemplo de pintor-iluminador do século XV. A inversão por simetria do rosto de D. Henrique na iluminura – por comparação com o pintado no Painel do Infante – é compreensível quando for reconhecido como seria menos harmonioso representá-lo apartando a sua visão do texto, que se inicia no fólio seguinte. Tendo em conta a datação do políptico para 1445, o retrato no Painel do Infante deve ser considerado de execução mais antiga do que o do códice da BnF.

Mantendo-nos atentos às datas, notemos como 1445 e 1453 distam entre si de oito anos, menos, portanto, do que os dezassete ou mais que separam 1453 dos anos da década de 1470, a datação defendida pelo MNAA para o políptico.

Mas, e aqui toca-se num ponto crucial, a presença de D. Henrique, terceiro filho de D. João I, numa posição que não é ela própria fronteira implica, em boa lógica, que pelo menos algumas das personagens nos primeiros planos dos dois painéis centrais [o Painel do Infante e o Painel do Arcebispo] são elementos com precedência dentro da família real. Esta constatação restringe drasticamente a miríade de hipóteses quando se propõem identificações consistentes. Em boa verdade, as identificações destas personagens principais da família real tornam-se praticamente inequívocas para qualquer razoável conhecedor da História Portuguesa na década de 1440. Por outras palavras, Cook tinha razão. Frise-se, que o políptico está datado na bota do adolescente com o ano de 1445.

A coerência da iconografia fernandina

Facto relevante e portador de significado iconográfico, a figura do santo, duplicada nos dois painéis centrais, levanta uma questão delicada de protocolo: qual, dos dois adultos a quem o santo dirige explicitamente a sua atenção, será a figura régia? A indumentária de adamascado verde com debruns dourados destaca pela sua riqueza o adulto com um só joelho em terra a quem o santo apresenta um livro aberto, no Painel do Infante. A proximidade de uma figura feminina com vestes de aparato e alta coifa e a de um adolescente apontam assim para a presença nesse painel do casal régio e do seu primogénito. Mas, como explicar então que no Painel do Arcebispo o santo privilegie com a entrega de uma vara dourada, atributo simbólico de poder supremo, um outro adulto com um só joelho em terra?

Ora, em 1445, ano de finalização do políptico, o Rei de Portugal, D. Afonso V – o adolescente na pintura, fronteiro ao infante D. Henrique -, contava treze anos de idade. Sendo ele menor, estava o poder da regência nas mãos de seu tio, o infante D. Pedro – o adulto a quem a vara dourada era entregue. A lógica própria à tese fernandina – tese já defendida em 1926 por José Saraiva, autor de Os Painéis do Infante Santo – torna natural a representação póstuma de D. Duarte – o homem de adamascado verde -, numa homenagem ao seu irmão D. Fernando, o mártir de Fez – o santo representado de dalmática. Límpida explicação para a ambiguidade na identificação da figura régia e para a dupla representação do santo no políptico!

Em resposta à questão «O grande mistério deste políptico é ter o santo a olhar para si mesmo?» [refere-se, sem dúvida, a duplicação da figura do santo], que conflui na questão anterior da ambiguidade na identificação da figura régia, o atual diretor do MNAA, contrariando toda a evidência estética, que aponta para o acerto da disposição dos seis painéis num único políptico, chega a ponderar o regresso à disposição em dois trípticos, optada por José de Figueiredo, mas finalmente abandonada em 1940.

Nas palavras de Joaquim Caetano: «O que pode querer dizer que aquilo que nós entendemos como uma figura icónica» [que só deveria estar representada singularmente] «tem uma narração» [a figuração narrativa já poderia justificar a repetição] «à qual nós não chegamos. Ou seja, que isto faz parte de uma história que eles sabiam exatamente qual era». E assim se confirma como a correta identificação das figuras principais tem implicações para a própria apresentação museológica das seis tábuas e nunca deveria ser menosprezada.

«Confusos? Esta é a essência dos ‘Painéis’ ditos de São Vicente». Com este desnorteante comentário Christiana Martins e Miguel Cadete encerram o seu longo e pouco esclarecedor artigo no Expresso. Compreender-se-á melhor neste ponto a crítica atrás feita à densa teia de dúvidas e de perplexidades enredadas por Joaquim Caetano.

Mas há matéria mais grave. A presente direção do MNAA persiste, na senda das suas antecessoras das duas últimas décadas, na tentativa, lamentavelmente conseguida, de ocultar ao visitante do museu menos atento e esclarecido um facto capital: com toda a verosimilhança, essencialmente reconfirmada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo em novembro de 2002, o Políptico de S. Vicente de Fora está assinado por Nuno Gonçalves e datado de 1445, ano já intuído por José Saraiva em 1926.

A assinatura, de inspiração sigilográfica, encontra-se pintada em símbolos dourados na bota do adolescente, fronteiro a D. Henrique no Painel do Infante e que é, como atrás se reconheceu, D. Afonso V, o rei de Portugal, contando então treze anos de idade. Devem os símbolos ser rodados 180 graus para ganharem legibilidade – eis a razão para a assinatura se ter mantido desconhecida décadas a fio. Assim, a inversão de escrita escolhida por Gonçalves apresenta quase em exclusivo o nome do pintor aos olhos do jovem rei. Se a conotação do selo com a prerrogativa real for evocada, a inspiração sigilográfica da inscrição combina, de forma discreta, a homenagem de Gonçalves à figura régia com a afirmação, quase orgulhosa, da obra-prima terminada, tecendo assim um laço subtil entre o artista e o seu senhor.

Se a data de 1445 é surpreendentemente precoce no século xv, note-se que Joaquim Caetano concedera já em 2021 que a documentada nomeação de Nuno Gonçalves para pintor régio em 1450 pressuporia que ele «era um pintor de top, já [naquele ano de 1450] um dos melhores senão o melhor pintor português». Denuncie-se que o encobrimento de uma inscrição de tal significado lança uma mancha sobre o museu e defrauda os Portugueses.

http://paineisnunogoncalves.org/assinaturas.html

http://paineisnunogoncalves.org/Analisedendrocronologica.html

(continua)