Carlos Manuel. “Marcar o golo à Alemanha foi a pior decisão da minha vida…”

Atenção que a frase vem como humor! A desgraça veio depois desse jogo de Estugarda, no dia 16 de Outubro de 1985. O Carlos cumpriu, há dez dias, 66 anos. Hoje é mais um comunicador, um «entertainer» do que outra coisa qualquer. Leva jeito. A última vez que ocupou o cargo de treinador foi em…

Atenção que a frase vem como humor! A desgraça veio depois desse jogo de Estugarda, no dia 16 de Outubro de 1985. O Carlos cumpriu, há dez dias, 66 anos. Hoje é mais um comunicador, um «entertainer» do que outra coisa qualquer. Leva jeito. A última vez que ocupou o cargo de treinador foi em 2012 e nunca mais vai voltar a sentar-se num banco.

George Bernard Shaw, um dos grandes escritores de todos os tempos, figura ímpar da História da Irlanda, era dono de uma prosa a todos os títulos admirável e de um sentido de humor que não lhe ficava muito atrás. Viveu praticamente nove décadas e meia e, certa vez, à saída de uma cerimónia qualquer, que nem para aqui vem ao caso, um repórter mais coscuvilheiro lembrou-se de lhe perguntar: «A que se deve a sua longevidade, Mr. Shaw?» Ao que ele, suavemente irónico, respondeu: «Ao facto de ter nascido há muito tempo».

Há momentos em que passamos a que poderia chamar-se fase/Bernard Shaw. Eu que o diga, por exemplo, quando dou por mim a pensar que conservei (e conservo perante aqueles que ainda estão entre nós) uma relação de amizade e de empatia com várias gerações do futebol em Portugal, desde a de Eusébio, Coluna, Torres, Simões, José Augusto, Fernando Mendes, passando pela do Damas, do Gomes, do Chalana, do Jordão, dos manos Campos e do Gervásio, prolongando-se pela do Rui Costa, do Figo, do Fernando Couto, do Capucho e prolongando-se na do Ronaldo, do Maniche, do Nuno Valente, Ricardo, Costinha, Ricardo Carvalho, Pauleta e por aí fora. Da geração mais antiga, gente mais velha do que eu, tantos desapareceram já, até amigos que tinha para lá das fronteiras, como Just Fontaine, Bobby Charlton, Franz Beckenbauer, ou Pelé. Depois veio o terrível desaparecimento de gente ainda tão jovem como o Chalana, o Gomes, o Jordão ou o Damas… A Senhora da Gadanha ronda, silenciosa, em busca das suas vítimas.

Gente que jogou contigo, Carlos? Deve ser difícil. E falo destes como podia falar de outros.

(Os olhos dele embaciam-se)

Muito difícil! Muito doloroso. Talvez a mais dolorosa destas últimas mortes tenha sido a do Frederico. Começámos juntos na CUF, fomos juntos para o Barreirense, estivemos juntos no Benfica e na selecção nacional, e ainda o apanhei no Boavista. Vivi todos os seus últimos momentos de uma forma marcante. E outros que se foram tão novos: o Neno, o Chalana, o Fernando Gomes…

Não quero transformar esta entrevista numa conversa negativa, mas deixa-me colocar esta pergunta: qual foi a pior decisão que tomaste na tua vida? Profissional, claro está!

Eh, pá! Eis algo de que não estava à espera…

Ainda bem, é bom sinal.

Diria que foi chutar aquela bola que deu a vitória de Portugal na Alemanha, em Estugarda.

??? Teria sido melhor que Portugal não fosse ao Mundial?

Não, não. Sublinha por favor que estou a dizer isto com uma dose razoável de humor. Haveria muito para contar. Muito. Algo que não cabe aqui. O problema foi termos ido para o México como heróis e termos voltado como vilões. O passar dos anos demonstrou que tínhamos razão. Olha, que leiam o livro escrito pelo Pedro Adão e Silva e pelo João Tomaz que se chama Deixem-nos Sonhar. Basicamente tem lá tudo o que aconteceu em Saltillo e nunca deveria ter acontecido e por isso digo, com humor, que aquele pontapé de Estugarda foi uma má decisão. Tudo o que se passou já vinha de antes, já vinha desde o Europeu de 1984.

Já li! Era o que faltava. O Pedro até é meu primo, vê lá a pequenez deste mundo. Foi aí que acabou a tua vida na selecção nacional.

Foi. Mas é preciso que algo fique, de vez, bem esclarecido: nunca disse que não voltava a jogar pela selecção nacional. Só disse que não voltaria à selecção enquanto estivesse lá aquele presidente.

Silva Resende.

Esse mesmo!

Uma figura meio sinistra, digo eu. Chegou a director de A Bola. Intrinsecamente fascista. Acabou por ser saneado.

Mas deixa-me esclarecer mais um facto. No final de um treino, no Estádio Nacional, disse ao vice-presidente Amândio de Carvalho que ia dali para o hotel fazer a mal e que não seguiria para o México.

Ora essa. E depois?

Tudo o que reclamávamos em grupo estava por cumprir. Não havia qualquer intenção da Federação de resolver as questões que estavam sobre a mesa e que todos sabem quais foram porque o assunto foi falado e falado ao longo dos anos.

Mas acabaste por ir para o México com a equipa.

Sabes porquê?

Não. Mas vais dizer-me.

Porque estava à porta do hotel com a mala na mão para regressar a casa quando três pessoas vieram falar comigo e pediram-me para ouvir as suas opiniões: falo do seleccionador José Torres, do Bento e do Fernando Gomes. Sentámo-nos a conversar, pediram-me para não sair, para não tomar uma posição isolada, justificando que devia ser tomada em grupo, que todos juntos poderíamos ter mais possibilidades de avançar com as nossas exigências. Foram eles que me convenceram a ficar. Foram eles que me fizeram tomar outra posição, dentro do colectivo, e viajar para o México.

Então acabou por ser bom.

Se queres que te diga com toda a franqueza, hoje estou arrependido por ter aceitado ficar e viajar com a equipa. Nesta altura não voltaria de certeza atrás com a minha decisão. Mas foi o que aconteceu.

Duas novidades: o Sporting e Eriksson

Ainda na semana passada publiquei nestas páginas uma entrevista com Sven-Göran Eriksson, a contas com uma fase duríssima da sua vida, e um amigo perguntava-me à moda do jornalista que questionou Bernard Shaw: «Como conheces tanta gente?» E eu respondo, sem ironia: «Porque estou aqui há muitos anos». Cruzei-me pela primeira vez com Eriksson em 1983. Já se me perguntarem quando conheci o Carlos Manuel, não sei dizer ao certo. Certamente na altura em que deixei o jornalismo político n’O Semanário, dirigido por Victor da Cunha Rego, chefiado pelo Raul Vaz (que me chamou para o meu primeiro emprego), e com gente como o meu saudoso João Mesquita, com a minha querida Maria João Vieira, com o Afonso Camões, com o Jorge Baptista e o meu mano Luciano Alvarez, para passar brevemente num O Século onde tive a felicidade de me cruzar com malta do calibre de Peixe Dias ou do extraordinário Eduardo Gageiro.

Entrei para A Bola no final dos anos-80, subi religiosamente as escadas apodrecidas e e curva da Travessa da Queimada até à Redacção que ficava no 2.º andar. O Carlos tinha chegado ao fim da sua carreira no Benfica, ou estava por um fio. Acabaria por assinar pelo Sion e rumar à Suíça.

Sion? Não fazia muito sentido…

Olha! Nem de propósito. Se queres saber de opções das quais me arrependo, essa de ir para o Sion é uma delas. Não precisava daquilo. Foi uma aposta que perdi. Até em termos financeiros. Um erro grande!

E regressaste, mas para o Sporting.

De uma forma perfeitamente natural. Com o máximo profissionalismo possível.

Não te sentiste hostilizado pelos adeptos do Benfica? Afinal sempre te assumiste como benfiquista.

E sempre fui benfiquista e não houve da parte dos adeptos do Benfica nenhuma atitude de desrespeito para comigo. É absolutamente natural que um profissional de futebol jogue num clube adversário. É essa a sua vida.

Ninguém te chateou?

Talvez no jogo em que o Sporting foi à Luz tenha havido um ambiente mais agressivo em meu redor. Mas nada de especial.

Recuemos um pouco: a tua saída do Benfica.

Atenção! Mais uma vez tenho de sublinhar algo: fui eu que tomei a decisão de sair. Ninguém me pôs na rua. Estava numa altura em que sair era uma probabilidade em todos os aspectos e resolvi sair pelo meu próprio pé.

Ou seja: estavas a sentir que, tal como aconteceu com o Diamantino, por exemplo, não tardaria o momento em que te iriam dispensar. Foi isso?

Olha, na verdade o que senti é que, nessa altura, havia no futebol português três jogadores demasiado marcados por tudo o que se passou em Saltillo e que nenhum de nós viria a ter vida fácil. Não vale a pena negar os factos. Eu, o Diamantino e o Bento tínhamos tomado posições duras e havia quem quisesse que pagássemos por elas. O meu dia a dia no Benfica já não era igual ao que tinha sido até aí. Muita coisa mudou em muitos aspectos. O facto é este: a vida na Luz já não era igual. Achei que estava na altura de sair. E saí. Embora, como já disse, a opção de ir para o Sion tenha sido uma má opção.

A vítima acabou por ser o Diamantino.

Ora, aí está! A forma como o Diamantino acabou por sair do Benfica veio confirmar tudo o que pensava.

Mas, mais tarde, quiseste voltar, não foi?

Verdade.

E?

Quis voltar. Ponto. O resto não sei.

Vamos lá voltar ainda um pouco mais atrás: como sabes, o nosso amigo Sven-Göran Eriksson está muito mal. A notícia chocou-me particularmente porque tenho uma enorme estima por ele. Calculo que sintas o mesmo.

Que dizer? Já sabia dessa situação há uns tempos através do Toni e do Rui Costa. Acho que posso dizer sem entrar na privacidade de ninguém que o Rui Costa fez os possíveis para o convidar a vir ver um jogo ao Estádio da Luz e lhe proporcionar a homenagem que os adeptos querem, certamente, prestar-lhe porque foi alguém absolutamente especial. Pelos vistos, o Sven foi desaconselhado de fazer a viagem pelas razões que são óbvias. Ainda assim acho que é necessário fazer-lhe a devida homenagem…

Claro que é uma situação delicada. Falei com ele, senti-o com força, conversámos sobre vários assuntos. Não estamos a falar de alguém que morreu.

Por isso mesmo. A homenagem que ele merece deve ser uma transmissão de força e de solidariedade. Uma demonstração de que os benfiquistas estão com ele, que não o esquecem, e que estão a lutar a seu lado nesta fase tão difícil da sua vida.

Treinador? Nunca mais!

Eriksson desembarcou na Portela com ar de garoto e um chapéuzinho a dizer Macieira, uma notável acção publicitária utilizando a imagem daquele que prometia vir a ser o grande treinador do futuro do futebol europeu, acabado que estava de ganhar a Taça UEFA com um desconhecido Gotemburgo que foi a Hamburgo dar 3-0 aos alemães na segunda-mão da final no tempo em que esta era assim disputada. Depois quase repetiu o feito já com o Benfica. O Carlos tinha uma inequívoca importância no futebol musculado, rápido e reactivo dos encarnados. Tanto no meio-campo como encostado à direita.

Ele explica:

«Com o Mário Wilson jogava geralmente no meio; depois veio o Lajos Baroti e puxou-me para a direita, dando o meio ao Alves. Com o Eriksson joguei sobretudo no meio e com o José Luís a fazer a ponta-direita».

Notaste logo que o Eriksson era outra loiça.

Impressionante. A relação que criou connosco foi incrível. Todos os jogadores estavam com ele até ao fim. Ele mudou o futebol em Portugal de cima abaixo. Acabou com os estágios: chegávamos com a mala ao estádio, treinávamos e mandava-nos embora: «Apareçam antes do almoço no dia do jogo». Quando jogávamos em casa, claro. E mudou a nossa mentalidade. Só nos dizia: «Mas vocês são melhores do que os adversários, jogam mais, vão lá para dentro fazer o que sabem e ganhem». Grande treinador! Grande homem!

Se tivesses que escolher um momento da tua vida que gostasses de repetir qual era?

Lá estás tu com perguntas difíceis. Isso obriga-me a pensar… Olha, vou dizer 1978, num estágio da selecção de Esperanças. O Romão Martins veio ter comigo e perguntou-me se queria ir para o Benfica. Vê bem. Eu, um garoto que jogava no Barreirense e trabalhava nas Oficinas da CP. O que aprendi no Benfica mudou-me para sempre. Mudou a minha vida!

Hoje és um quê? «Entertainer»?

Mais um.

Não. Mais um não. As pessoas gostam de ti, gostam dos teus programas…

Reconheço que abri algumas portas e criei algo de novo: acabei por terminar com o tabu de os jogadores serem impedidos de falarem em público sobre a sua vida pessoal. Libertámos as conversas quando O Defeso foi para o ar em 1999.

Treinador é certo que nunca mais…

Não! Decidi que não quero voltar a ser treinador nunca mais na vida. Aliás, acrescento: nunca poderia voltar a ser treinador de jogadores que não têm carácter…

É uma indirecta muito directa. A mudança do Salgueiros para o Sporting marcou-te? Eras tido como treinador de futuro…

Como sempre, teve que ver com pessoas com as quais trabalhei. Gente com a qual não dava mesmo para voltar a ser treinador.