“O número de doentes com síndromes demenciais vai aumentar brutalmente nos próximos anos”

No décimo aniversário do CNS – Campus Neurológico, Joaquim Ferreira, diretor clínico do mesmo, aborda as doenças neurológicas, focando-se especialmente nas neurodegenerativas.

Em 2021, houve uma redução nas mortes por doenças do aparelho circulatório em Portugal, mas estas continuam a ser a principal causa de morte no país, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) que foram revelados em maio passado. Mesmo com uma queda de 6,2% em comparação com o ano anterior, as doenças cardiovasculares resultaram em 32.452 óbitos, representando 25,9% de todas as mortes, uma diminuição de 5,9 pontos percentuais em relação ao ano anterior. Dentro das doenças cardiovasculares, destacam-se 9.613 mortes por AVC, embora tenha havido uma queda de 16% em comparação com 2020.

Por outro lado, um estudo publicado na revista científica The Lancet Public Health revelou que até 2050, aproximadamente 153 milhões de pessoas em todo o mundo estarão a viver com demência, quase três vezes mais do que os 57 milhões estimados para 2019. Este estudo examinou as estimativas do número de adultos com 40 anos ou mais que terão demência em 204 países ou territórios diferentes, comparando os anos de 2019 e as projeções de 2050. Os quatro principais fatores de risco identificados são o tabagismo, obesidade, hiperglicemia (níveis elevados de açúcar no sangue) e baixa escolaridade. Em Portugal, espera-se que o número de pessoas com demência chegue a 351.504 em 2050, o que é menos do dobro do número previsto para 2019, que era de 200.994. A demência mais comum é a doença de Alzheimer, que representa entre 50 a 70% dos casos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

“As doenças neurológicas que simultaneamente são mais frequentes e têm um maior impacto no estado de saúde das pessoas são os acidentes vasculares cerebrais, as demências (nomeadamente a doença de Alzheimer) e a enxaqueca”, começa por explicar Joaquim Ferreira, ao i e ao SOL, diretor clínico do CNS – Campus Neurológico, aquando do décimo aniversário da instituição. “Das doenças que mencionei, aquelas que me preocupam mais são as doenças neurodegenerativas. Este facto não desvaloriza o impacto que a enxaqueca tem na qualidade de vida dos doentes e a interferência que gera no seu dia a dia”.

“Relativamente aos acidentes vasculares cerebrais, devemos reconhecer que nos últimos 20 anos houve uma enorme melhoria nos cuidados prestados na fase aguda e, desta forma, tem sido possível tratar muito melhor os doentes nas horas iniciais de ocorrência de um AVC. Relativamente às doenças neurodegenerativas, não temos ainda tratamentos que verdadeiramente impeçam ou atrasem a progressão dos sintomas e a perda de autonomia dos doentes”, adianta. “Por outro lado, é expectável que o número de doentes com doenças neurodegenerativas, nomeadamente doença de Parkinson e doença de Alzheimer, venha a aumentar muito nos próximos anos”, alerta. 

Em 2022, foi divulgado um estudo realizado pela equipa de Joaquim Ferreira que estimava a existência de aproximadamente 20 mil doentes com Parkinson em Portugal. Apesar de os idosos serem os mais afetados, cerca de 10% dos doentes tinham menos de 50 anos. Este panorama mantém-se ou agravou-se? “Apesar de existir sempre um pequeno grupo de doentes que inicia os sintomas de demência ou de doença de Parkinson em idades mais jovens, a grande maioria dos doentes tem mais de 60 anos. Havendo uma melhoria global dos cuidados de saúde será mais provável efetuar diagnósticos em fases mais precoces da doença”, indica. “Contudo, o que verdadeiramente me preocupa não é o risco do aumento do número de doentes com doenças neurodegenerativas que iniciam os sintomas em idades mais jovens, mas sim o aumento do número global de doentes com estas doenças fruto das alterações demográficas, com o envelhecimento da população, e também do aumento de outros fatores de risco”.

“Relativamente às demências o mais importante é todos incorporarmos que, num país com um claro envelhecimento da população, o número de doentes com síndromes demenciais vai aumentar brutalmente nos próximos anos. Desta forma, como comunidade, devemos tentar antecipar qual será a melhor forma de, por um lado, tentar prevenir ou atrasar o aparecimento destas doenças e, por outro, melhorar o modo de prestação de cuidados de saúde a estas pessoas”, destaca Joaquim Ferreira, continuando: “No meu entender, é necessário começarmos a desenhar, testar e depois implementar novos modelos de prestação de cuidados de saúde que seguramente implicarão o envolvimento de outros profissionais de saúde e mesmo profissionais não diretamente ligados à área da saúde (ex.: engenharia biomédica, educação, etc.)”. 

“Quando falamos de doenças neurodegenerativas é importante não esquecermos um conjunto de outras doenças igualmente progressivas e incapacitantes, mas que pelo facto de serem mais raras acabam por merecer menos atenção por parte de todos. Muitas vezes, o simples desconhecimento sobre uma determinada doença rara, e da forma como se manifesta, acaba por trazer dificuldades adicionais a uma doença que, por si só, já é ‘cruel’”, sublinha, referindo-se a patologias como a esclerose múltipla, a esclerose lateral amiotrófica ou a doença de Huntington.

Por estes motivos, a ideia da criação do CNS surgiu da necessidade de cuidados para doenças neurológicas, especialmente neurodegenerativas, aliada ao interesse pessoal do diretor clínico e apoio familiar para construir uma unidade de saúde dedicada, como frisa Joaquim Ferreira. “A ideia de criar o CNS surge do reconhecimento de haver uma enorme necessidade de prestação de cuidados em algumas doenças neurológicas, nomeadamente as doenças neurodegenerativas, e o facto de esta ser a minha área de interesse do ponto de vista clínico, académico e de investigação. Também beneficiou de haver um interesse e disponibilidade familiar para assumir a construção de um edifício que acolhesse uma unidade de saúde vocacionada para o tratamento destas doenças”, conta, sendo que “as expectativas iniciais eram apenas de conseguir criar uma unidade de saúde vocacionada para tratar doenças neurológicas, que conseguisse prestar cuidados de saúde de qualidade e que fosse sustentável”.

“Atualmente, ao reconhecer que fomos capazes de criar uma unidade de saúde que concilia a prestação de cuidados de saúde, com a formação de profissionais e ainda a capacidade para desenvolvermos e conduzirmos projetos de investigação, ultrapassa seguramente as expectativas iniciais, pelo menos para uma janela temporal de 10 anos”, diz o médico, sendo que, apesar de considerar que não deve ser ele a concluir se o CNS atingiu ou não reconhecimento nacional e internacional, partilha que este é identificado cá e lá fora “como uma unidade de referência na área das doenças neurológicas”. E em que é que difere das outras instituições? Na ótica de Joaquim Ferreira, “a especificidade do CNS resulta de ser uma unidade de saúde particularmente vocacionada para algumas doenças neurológicas, nomeadamente disponibilizando uma abordagem multidisciplinar dirigida ao diagnóstico e à reabilitação de doenças muito específicas e com programas terapêuticos diferenciados e intensivos”.

“Existem no mundo outras instituições de saúde que também se dedicam ao diagnóstico e abordagem terapêutica destas doenças. Contudo, muitas delas disponibilizam apenas algumas das áreas mais relevantes para o melhor tratamento destas doenças ou encontram-se inseridas em outras unidades de saúde generalistas e de maior dimensão. A possibilidade de conciliar, numa mesma unidade, competências da área da neurologia, medicina interna e muitas outras áreas importantes para a abordagem multidisciplinar e reabilitação de doentes com patologia neurodegenerativa (enfermagem, fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, psicologia, nutrição, etc.) é uma especificidade que caracteriza o CNS”, destaca, tal como fez na conferência ‘O que aprendemos nestes 10 anos?’, dinamizada no CNS Torres Vedras. Na mesma, Joaquim Ferreira partilhou aquilo que “sucedeu de mais relevante na área médica relativamente ao tratamento de doenças neurológicas nos últimos 10 anos” e mencionou o que a equipa pensa “ter aprendido, neste mesmo período, no CNS”, frisando que os ensinamentos que partilhou “são muitas vezes diferentes” daquilo que eram as suas “convicções anteriores e que muitas vezes diferem do que os médicos e os outros profissionais de saúde mais valorizam no seu contacto com os doentes”.

Já na conferência ‘How We Should Treat Neurological Disorders in the 21st Century?’, o Professor John Krakauer, neurologista e neurocientista do Hospital John Hopkins nos Estados Unidos e agora investigador na Fundação Champalimaud, “partilhou os resultados dos seus próprios estudos em que avaliou o papel de algumas intervenções terapêuticas que passam, por exemplo, pela utilização de jogos virtuais como tratamentos adicionais para doentes que sofreram acidentes vasculares cerebrais”, tendo também partilhado “a sua visão sobre a melhor estratégia para tratarmos doenças neurológicas, nomeadamente doenças neurodegenerativas como a doença de Parkinson e a doença de Alzheimer”. Na sua conferência ficará seguramente visível a necessidade da mudança de paradigma na abordagem terapêutica destes doentes, quer nos aspetos relativos ao momento em que devemos começar a tratar (o mais cedo possível), quer relativamente aos instrumentos e abordagens terapêuticas a disponibilizar, tendo sido notória a necessidade de mudança de “abordagem terapêutica dos doentes”.

O CNS já prestou cuidados a 24 mil pessoas com doença neurológica, tanto portuguesas como de outras nacionalidades. “O facto de já termos tratado muitos doentes apenas demonstra que temos experiência, diferenciação e treino no acompanhamento de pessoas com estes problemas. Contudo, o nosso objetivo, mais do que numérico, é, todos os dias, continuarmos a poder disponibilizar aos nossos doentes aquilo que a medicina tem de mais eficaz para os ajudar a melhorar a sua autonomia e bem-estar”, explicita o diretor clínico do CNS, que conta com uma equipa de mais de 270 colaboradores das mais diversas áreas, como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, auxiliares, etc. “A abertura, este ano, de um novo CNS em Lisboa e agora a mais recente abertura do CNS Braga, por si só, obrigam ao recrutamento de novos profissionais nas nossas equipas de fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, psicologia e nutrição. Mas as portas do CNS estarão sempre abertas para todos os profissionais de saúde que tenham interesse e motivação em nos ajudar a cumprir a nossa missão e partilhem os nossos objetivos e valores”, nomeadamente na abertura de “duas ou três novas unidades”, com o exemplo da inauguração do CNS Braga em janeiro.