Proibição do uso de telemóvel na escola. “Não permitir não é o caminho a seguir”

No Colégio Senhora da Boa Nova, o uso de telemóveis é proibido. A diretora pedagógica, Cristina Sargento, explica ao i o que está em causa, assim como a psicóloga Lourdes Caraça, uma das autoras do estudo ‘Scroll. Logo existo!’.

Crianças brincam alegremente no recreio, jogando matraquilhos, correndo umas atrás das outras, jogando futebol e voleibol ou, simplesmente, aproveitam a infância juntos e sem ser por intermédio de um ecrã. No Colégio Sra. da Boa Nova a regra é clara: os telemóveis têm de estar desligados desde o início da primeira aula até à saída da última. Cristina Sargento, diretora pedagógica da instituição, explica ao i quais são “os desafios e as nuances desta abordagem”, destacando “a resistência dos alunos e dos encarregados de educação apesar do consentimento teórico”, na medida em que “parece haver uma tensão entre a política da escola e as expectativas e práticas dos alunos e pais”. A título de exemplo, existem encarregados de educação que, nas reuniões, dizem concordar plenamente com as medidas, mas, no dia-a-dia, “telefonam e enviam SMS aos filhos/netos/etc. com imensa frequência”.

A diretora menciona a implementação prática desta política, incluindo “confisco de telemóveis e preocupações com a dependência dos alunos das redes sociais e dos dispositivos digitais”. Aliás, numa aula de Inglês, disciplina que leciona, em que se estava a debater o uso de redes sociais, uma estudante chegou mesmo a reconhecer que tem um problema com estas plataformas. “A miúda disse-nos, a mim e aos colegas, que não aguenta estar sem o telemóvel porque tem muito receio de não saber aquilo que se passa no mundo”, diz Cristina Sargento, abordando o FOMO – fear of missing out ou ‘medo de perder algo’, em português – de que o psicólogo André Ferreira falava na reportagem sobre a Escola Básica e Secundária de Carcavelos, reconhecendo “a dificuldade de fazer cumprir consistentemente as regras, especialmente com alunos mais velhos que estão acostumados a ter mais liberdade com os seus dispositivos”.

Cristina Sargento destaca “a complexidade de equilibrar a necessidade de preparar os alunos para o mundo digital com os desafios práticos e preocupações com o uso excessivo das tecnologias”, explicando que o objetivo do colégio passa por proporcionar às crianças e jovens “espaços de lazer onde possam jogar à bola, jogar voleibol, andar de skate, ler, jogar jogos de tabuleiro… Enfim, fazer tudo menos estarem agarrados ao telemóvel e até mesmo isolados dos colegas”, enfatiza a professora. Quem não concorda com esta proibição é a psicóloga Lourdes Caraça, que tem investigado a temática. “Não permitir não é o caminho. Temos de educar as crianças e os adolescentes para que saibam usar a tecnologia de forma saudável e equilibrada”, diz, frisando “a necessidade de proporcionar momentos sem o uso de dispositivos eletrónicos para que os mais jovens aprendam a lidar com o tempo livre” e até com o facto de “estarem sozinhos por vezes”.

São mencionados estudos sobre a dependência de ecrãs e os possíveis efeitos negativos do uso excessivo de smartphones, como a perturbação do sono e a dificuldade em lidar com as emoções. A psicóloga ressalta a importância de “desenvolver competências de gestão do uso da tecnologia desde cedo” e sugere que “as escolas desempenhem um papel ativo nesse processo”. Por isso, diz estar “totalmente disponível” para ajudar as escolas “a desenvolver estratégias relacionadas com o uso saudável da tecnologia”, destacando a importância de uma “abordagem colaborativa entre pais, educadores e profissionais de saúde”.

Lourdes Caraça é uma das autoras do estudo ‘Scroll. Logo existo!: os comportamentos aditivos no uso da internet e das redes sociais’, disponível no repositório das Universidades Lusíada, por meio do qual é abordado o impacto da tecnologia digital na vida contemporânea, sendo evidenciados os seus aspectos positivos e negativos. A facilidade de acesso a conteúdos, comunicação e entretenimento através de smartphones e redes sociais é ressaltada como uma mudança significativa na forma como interagimos e nos relacionamos. Porém, o texto também alerta para os riscos da dependência tecnológica, como ansiedade, depressão e outros problemas sociais e psicológicos. Embora reconheçam os benefícios da tecnologia, os autores realçam a importância de um uso consciente e equilibrado, evitando a “dominação” e “escravização”. A sociedade atual está cada vez mais imersa na tecnologia e, de acordo com estes especialistas, é crucial compreender e gerir os seus impactos para uma vida saudável e equilibrada.

Destaca-se a dependência gerada por comportamentos como entretenimento online, jogos e sexo virtual, comparando-a à dependência de substâncias como o tabaco. O projeto descrito tem como objetivo estudar esses padrões de uso de ecrãs entre os portugueses, identificar comportamentos aditivos, traçar perfis dos utilizadores e desenvolver um plano de prevenção. O estudo é descritivo e exploratório, utilizando métodos quantitativos (questionários online) e qualitativos (entrevistas semiestruturadas) para investigar o fenómeno do uso excessivo de dispositivos móveis em Portugal. Quem já se mostrou preocupada com esta temática foi a UNESCO, em julho de 2023, que recomenda que o uso de smartphones nas escolas seja restrito às atividades curriculares e em casos em que a sua integração não contribua para a aprendizagem ou perturbe o funcionamento das aulas, deve ser proibido. Estas conclusões surgiram no seguimento da divulgação do relatório anual da UNESCO sobre tecnologia na educação, que aborda vários aspectos, incluindo o uso de dispositivos móveis em contextos escolares.

A UNESCO reconhece os benefícios de aprendizagem por meio do uso de dispositivos como telemóveis e computadores, mas alerta para os riscos associados. O ciberbullying é destacado como uma consequência negativa significativa, com um estudo abrangente revelando que, em média, pelo menos 20% dos estudantes do oitavo ano foram vítimas desse tipo de bullying digital. A UNESCO evidencia igualmente as consequências físicas e mentais da exposição prolongada a dispositivos eletrónicos, especialmente em crianças e jovens. Um relatório aponta que crianças entre os 2 e os 17 anos apresentam menor bem-estar físico quando expostas por longos períodos a ecrãs. Nos Estados Unidos, jovens entre os 11 e 14 anos passam em média nove horas por dia em frente a ecrãs, um número que aumentou durante a pandemia de covid-19. A UNESCO destaca a necessidade de linhas claras para a utilização ou proibição de dispositivos móveis nas escolas, visando a defesa dos alunos. O relatório sublinha que os estudantes não devem ser punidos na ausência de diretrizes claras sobre o comportamento desejado e observa a importância do diálogo e da evidência sólida na tomada de decisões envolvendo todos os intervenientes na aprendizagem.