Os Painéis de cara lavada. Mas com coração limpo? (II)

Encomendado no período imediato à morte do Infante Santo (5 de junho de 1443), o políptico estava terminado no decurso de 1445. Nuno Gonçalves e os seus contemporâneos viam os dois mártires – o infante D. Fernando e o diácono Vicente – irmanados, a um milénio de distância, pelo falecimento em cativeiro

As provas do acerto da tese fernandina, tese que surgiu renovada há pouco mais de duas décadas, são múltiplas e sólidas, mas exigiriam uma exposição extensa e cuidada, incompatível com as limitações deste artigo. Nuno Gonçalves e os seus contemporâneos viam os dois mártires – o infante D. Fernando e o diácono Vicente – irmanados, a um milénio de distância, pelo falecimento em cativeiro, seguido da privação de sepultura condigna, por sanha de cruéis carcereiros de fé inimiga (em Marrocos, Lazeraque substitui Daciano, o governador romano de Valência): eis a explicação simples para a confusão iconográfica. Aliás, aquele paralelo já fora intuído ao longo de décadas, com vários defensores da tese vicentina a aludirem, de forma mais ou menos explícita, à figura do Infante Santo.

No entanto, Nuno Gonçalves respeita as convenções ao representar D. Fernando nimbado de raios abertos no políptico, como convinha a um beato. Distintamente, S. Vicente, um santo com culto canónico, é pintado nos seus Martírios, pelo mesmo Nuno Gonçalves cerca de duas décadas mais tarde, aureolado com um disco fechado. Serão estas duas pinturas os verdadeiros torsos do desaparecido Retábulo de S. Vicente, outrora na Sé Catedral, referido por Francisco de Holanda em 1548. São estes concordantes com a melhor descrição que temos do retábulo, a de D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, publicada em 1642: «Seguem-se pellos maes paineis do retabolo de pintura singular, varios milagres do santo, com os passos principaes de sua vida & martyrio […]».

Nada que corresponda à evidência pictórica do Políptico de S. Vicente de Fora. No entanto, Joaquim Caetano, o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, acrescenta de sua lavra: «O que nós sabemos é que isto era um grande retábulo, que não só tinha estas tábuas mas um conjunto maior, com a vida e os martírios de São Vicente.» Assim, com uma liberalidade desatenta à descrição de D. Rodrigo da Cunha, tenta Caetano inserir, um tanto à força, no espaço retabular da Sé Catedral de Lisboa o políptico de seis painéis que conhecemos.

Documentadamente, o altar de S. Vicente beneficiou de grandes obras no final da década de 1460. Estas obras devem, com alta probabilidade, ter incluído o retábulo do santo, pintado, como sabemos, por Nuno Gonçalves. Pergunta pertinente: poderá a dendrocronologia revelar o desfasamento de um quarto de século entre a execução do políptico e a dos Martírios (1445 versus os anos finais da década de 1460)? Responde-se afirmativamente, pois a discriminação temporal entre os dois suportes é por demais evidente: todas as 22 pranchas datáveis presentes no políptico são claramente anteriores às 6 pranchas presentes nos Martírios.

Muito se debateu a dificuldade em aceitar que D. Fernando pudesse ter sido representado de dalmática. No entanto, já no início do século XIII, o Papa Inocêncio III autorizara que, em situações de cativeiro, um leigo pudesse ser autonomamente elevado a diácono, por forma a poder proporcionar o culto cristão aos seus companheiros de cárcere. A eventual apostasia da fé cristã por parte dos cativos em terra de Mouros provocava percetível angústia junto dos familiares e conterrâneos. O desejo de santificação de D. Fernando na pintura reconhece também o triunfo da constância da sua fé cristã – significativamente, quando lhe dedica uma peça de teatro, Calderón de la Barca intitula-a O Príncipe Constante. Finalmente, a dalmática seria também a mortalha julgada condigna para aquele corpo que fora profanado ao ser exibido nu, suspenso por uma corda atada aos seus pés, nas muralhas de Fez. Poder-se-á avançar explicação mais límpida para a corda enrolada aos pés do santo, no Painel do Arcebispo? Acrescente-se-lhe, acessoriamente, a simbologia da libertação do cativeiro do príncipe, mesmo que amargamente alcançada pela morte. Poupa-se ao leitor a recôndita e pouco natural justificação vicentina para a presença da mesma corda.

O santo, densamente envolvido pela assembleia que o homenageia, familiarizado com essa mesma assembleia pelo uso do seu barrete, surge singelamente apeado de qualquer pedestal. Todos estes pontos resultariam desajustados à figuração de S. Vicente. No entanto, as dalmáticas, tão focais na pintura, não podem ser afastadas de uma inegável alusão vicentina.

Note-se como, ao tentarem impor, numa dicotomia acirrada, o reconhecimento no políptico da figuração de S. Vicente sobre a de D. Fernando, muitos historiadores da Arte – Joaquim Caetano é um deles – demonstram incompreensão face aos aspetos mais subtis da representação de um príncipe sob a roupagem iconográfica de um santo, tantas vezes homónimo. Não resulta difícil encontrar exemplos de membros da família real portuguesa assim retratados: refiram-se Rainha D. Catarina como Santa Catarina de Alexandria e Infante D. Luís como S. Luís de França, pinturas pertencentes ao MNAA.

Quando a dúvida sistemática resvala para o encobrimento; apelo ao fim deste encobrimento no MNAA

Em coda, aceite-se o quádruplo desafio do ‘Quem, como, quando e porquê’. Contrariem-se assim as paralisantes dúvidas sistemáticas de Joaquim Caetano e proponham-se respostas, algumas ineludíveis, outras sustentadas em forte verosimilhança histórico-artística.

Quem: Nuno Gonçalves retratou a família real, acompanhada de «cidadãos honrados», escolhidos de entre as elites municipais da Lisboa de então.

Como: A obra terá sido pintada para a Confraria de Santo António (do «Bem-aventurado Santo Antoninho», na terminologia da época). Esta confraria municipal agregava os cidadãos de Lisboa desde 1431. A referida confraria tinha a sua capela sediada na Casa de Santo António, edifício fronteiro à Sé Catedral e que Lisboa consagrara dualmente como templo do santo e como Paço da Câmara. É um facto histórico que, ao longo de séculos, o município surge diretamente associado à redenção dos cativos e à obrigação de assegurar um funeral condigno a quem dele necessitasse. Tais preocupações ganhavam óbvia ressonância na morte em cativeiro do infante D. Fernando, o Infante Santo.

A confraria fora criada três escassos anos após a oferta da relíquia de Santo António ao município de Lisboa pelo infante D. Pedro. Note-se que a hipótese de a relíquia figurada no políptico ser precisamente aquela foi já repetidamente aventada.  Documentalmente, é sabido ter sido a Casa de Santo António o espaço escolhido por D. Isabel de Borgonha – também ela figurada no Painel do Infante, a par de D. Henrique – para comemorar a memória do infante D. Fernando, seu irmão.

A ostensão de uma relíquia em primeiro plano nas mãos de um homem que, ao envergar uma toga vermelha, aparenta não ser um eclesiástico, a figuração do arcebispo e do cabido em último plano, a presença dianteira de um franciscano espojado (tão natural, caso ele fosse o frade corretor da dita Confraria de Santo António, fronteiro à tríade de dirigentes da mesma confraria), a disposição em friso horizontal das dezenas de personagens, obviamente contemporâneas do pintor, eis todo um conjunto de evidências que tendem a afastar o políptico do contexto de uma catedral: quem não retém na memória a impressão de verticalidade transmitida pelos retábulos peninsulares antigos ainda in situ, onde, invariavelmente, são figuradas histórias sagradas? Ignorar esta discrepância revela acentuada falta de sensibilidade histórico-artística.

Quando: Encomendada no período imediato à morte do Infante Santo (ocorrida esta em 5 de junho de 1443), a obra estava terminada no decurso de 1445, provavelmente no final desse ano. A inscrição na bota de D. Afonso V é, neste ponto, um documento insofismável. Realizada em 2001, a análise dendrocronológica do políptico levou o autor desta, Peter Klein, a escrever, face à insuspeitada antiguidade do suporte de carvalho do Báltico, que as datações da pintura propostas para os anos de 1470, ou mesmo de 1460, se tornaram altamente improváveis.

Porquê: Demonstra-se com facilidade o ajustamento do espaço confraternal à explicação iconográfica de um políptico onde — facto invulgar, se não excecional, na pintura europeia do século xv — se encontram sessenta figuras humanas realisticamente retratadas, num contexto onde abundam os indícios de homenagem fúnebre. Seja recordada a presença na pintura de um esquife aberto, rodeado de capelães envergando sobrepelizes, bem como o facto de as personagens mais em evidência estarem em oração, rezando o Pater noster e a Ave Maria — as fieiras de contas nas mãos das figuras femininas e do franciscano prostrado são disso a prova. Assinalem-se também os sinais de luto nas vestes da família real, bem como a presença dos monges de Cister e do converso de Alcobaça, de longas barbas e que carrega um madeiro, verosimilmente a parte visível de uma cruz. Ora, um dos pontos mais fortes da tese fernandina é o de poder avançar um texto contemporâneo, o Compromisso da Confraria da Misericórdia de Lisboa, de 1498, que corresponde essencialmente à cena pintada por Nuno Gonçalves:

«[…] E levarão em suas mãos senhos Ramaes de xiiij. contas pretas. por sua lembramça. E tamto que emtrarem omde o corpo do dito defunto jouver antes que o tragam a tumba se asemtarão os jrmãaos que forem pera o trazer en gyolhos e farão acatamento a cruz que se custuma sempre estar com os defumtos e nõ se alevantarão ate primeiro lhe Rezar cada huu seu pater noster e ave maria por sua alma. e emtão tomarão o dito corpo com muito acatamento lembrandose que taes ham de ser. e entraram a dita tumba […]».

O políptico honrava a memória do infante mártir e exorcizava a angústia imemorial perante o corpo insepulto. Que esse corpo permanecesse então às mãos dos Sarracenos só exacerbava a premência de um funeral cristão para D. Fernando, o benjamim de entre os filhos de D. João I.

É profundamente irónico e embaraçoso que o imbroglio dos Painéis, chamemos-lhe assim, surja associado aos rostos dos infantes de Avis, os príncipes da «Ínclita Geração», no dizer de Camões. Que amargo desabafo mereceria todo este imbroglio, caso o pudesse conhecer, a Oliveira Martins, autor de Os Filhos de D. João I e figura tão atormentada pelo estigma da nossa decadência secular?

‘Quem, como, quando e porquê’ – finalmente, cumpre perguntar: mais esclarecidos? Espera-se que sim, pois a essência de os ‘Painéis’ ditos de São Vicente não deve ser a confusão. O processo de restauro iniciado em 2020 caminha para o seu termo e, uma vez concluído, é certo que haverá a vontade de reapresentar ao público do MNAA o políptico de ‘cara lavada’. É obrigatório que também seja então exposto com ‘coração limpo’. Hoje, mais do que nunca, tenhamos em mente o conselho dado há um século por António Sérgio, no parágrafo final do seu ensaio ‘A Conquista de Ceuta’:

«Cumpre, porém, que saibamos reaver o sublime dom de pôr a clareza do entendimento – como os Infantes – ao serviço do ‘talent de bien faire’ e da ‘virtuosa bemfeitoria’.»

Quando o fizermos, varridas as teias da confusão e do encobrimento, veremos finalmente os Painéis de Nuno Gonçalves rebrilharem à luz da razão. Fiat Lux!

José Alberto Machado

‘Uma nova hipótese que não deve ser combatida com ideias feitas’

Transcrevem-se as declarações que o Professor José Alberto Machado proferiu em 2010 para o documentário Os Painéis de Nuno Gonçalves à Luz da Razão. Encontra-se este documentário disponível no YouTube [https://youtu.be/bhbMv9krKAQ; procurar 47′: 09”].

As palavras de Alberto Machado ressoam com a autoridade que a cátedra de História de Arte na Universidade de Évora confere. Demonstram também a coragem de quem ao proferi-las se apartou, num ponto melindroso, do pensamento de grupo dos seus pares. Afirmou José Alberto Machado:

«E eu só tenho que lamentar, com toda a honestidade, que tenha havido alguma resistência no mundo académico e erudito, que preferiu encostar-se a teorias não direi mais fáceis, mas mais consagradas, do que enfrentar uma discussão intelectual aberta e profícua que eu teria saudado, porque se pretendemos que a História de Arte continue a ter foros de ciência tem evidentemente que adotar métodos de ciência, um dos quais é a credível e aberta adoção e discussão rigorosa de uma nova hipótese, que não deve ser rebatida com estereótipos ou com ideias feitas.

Só posso desejar que quem tem obrigações institucionais neste país, a começar pelo próprio Estado, que guarda este penhor maior da memória nacional, não veja problema nenhum em efetivamente ao contrário do que sucede na atual exposição do Museu de Arte Antiga [a já atrás citada Primitivos Portugueses (1450-1550), o século de Nuno Gonçalves, organizada sob a égide da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República] em cujo catálogo este problema é completamente omitido reabrir a discussão, readmitir a nova hipótese, que me parece, aliás, extremamente validável e extremamente provável e que, certamente, não tirará nada ao mérito e à honestidade de muitos intelectuais que no passado se debruçaram sobre os Painéis e que poderá significar um avanço importante do saber, não só em termos de História de Arte mas, sobretudo, em termos de cultura portuguesa e em termos de reafirmação e documentação de uma peça fundamental da memória nacional.»

* DPhil pela Universidade de Sussex