Cibercrime. ‘Mas porque é que ninguém faz nada?’

O crime não é novo, mas parece que com o passar dos anos os casos vão aumentando. Mel e Inês viram as suas fotografias íntimas partilhadas na internet. Vítimas daquilo que chamam “um esquema de pirâmide”, as jovens lamentam a falta de ação das autoridades nestes tipos de casos.

A história que lhe vamos contar aconteceu em 2022, no entanto, é possível que se repita todos os dias, mesmo que não saibamos. Felizmente, Ania Mel não ficou com trauma, no entanto, admite ter-se fechado mais desde então. “Isto aconteceu em maio/abril de 2022. Era um dia normal. Estava nas redes sociais e mandaram-me mensagem no Twitter, agora X”, começa por contar ao i a jovem de 24 anos, de Castelo Branco. Na altura, tinha uma mini comunidade nessa rede social. “Falávamos dos mais diversos assuntos e até pensei que fosse um sítio seguro. Pelo menos, era isso que desejava. Só lá tinha pessoas que me sentia confortável para falar”, continua.

Mel, como gosta de ser tratada, recebeu uma mensagem de uma das meninas que fazia parte da comunidade a dizer que tinha encontrado fotografias suas, nua, num grupo de homens, no Telegram – uma aplicação de mensagens com foco em velocidade e segurança, já que as mensagens são encriptadas tal como acontece no Whatsapp. “Eu achei aquilo muito estranho… Disse-me também que um primo dela, para além das minhas fotografias, tinha encontrado fotos dela. Tinha-lhe enviado prints – captura de ecrã –, e ia conseguir ajudar-nos a eliminar as fotografias desse grupo”, explica. “Isto pode parecer uma coisa muito estranha e parva, mas a verdade é que quando tinha 13 anos, uma coisa do género aconteceu e foi o primo de uma amiga minha que me conseguiu ajudar. Um homem, por vingança – estava apaixonado pela minha melhor amiga e achava que eu estava interessada nela (uma coisa mesmo tonta) –, roubou-me as contas das redes sociais e andava a publicar coisas horríveis em meu nome. O primo da minha amiga conseguiu recuperá-las”, lembra.

Um esquema em pirâmide

A jovem já tinha conversado com essa menina várias vezes e até tinha “alguma confiança nela”. “Por isso pensei: ‘Oh meu deus! Isto está a acontecer-me a segunda vez na minha vida!’. Mas não… Acabei por dar os meus dados, acreditando que tanto ela como o primo me iam ajudar, mas não era ela que estava atrás do ecrã”. A rapariga também era uma das vítimas da “rede”. Já lhe tinham roubado a conta. Dias depois, Mel recebeu outra mensagem do género, desta vez sem a parte do “primo”. “Percebi que se tratava de uma rede qualquer”, revela. Através das suas contas de Instagram e Twitter, essa pessoa comunicou com várias outras meninas. “Inclusive meninas menores de idade, partilhando depois fotografias delas nuas. Eu sei porque eu falei com essas raparigas depois pessoalmente. Muitas eram de Castelo Branco, mas isto aconteceu em Portugal inteiro e ninguém falou disto. Isto é um esquema de pirâmide, uma teia de aranha”, alega.

Depois, criou novas redes sociais e viu pessoas a reclamarem imensas contas, a avisarem sobre o esquema… “A ideia era roubarem todas as nudes – expressão que se dá a fotografias com nudez –, que a pessoa pudesse ter. Quando esta não queria dar os dados (ao contrário daquilo que eu fiz), o que acontecia – que foi o que aconteceu com a minha prima –, começava uma conversa sobre um trabalho de modelo. Neste caso, a fazer-se passar por mim, disse que eu tinha sido empregada numa agência e que ela também conseguiria entrar. Uma outra rapariga daqui da cidade veio dizer-me mais tarde que a pessoa que me tinha roubado a conta, tinha falado com uma menor, como se eu estivesse apaixonada por ela e já estavam a marcar um encontro. Infelizmente nunca soube quem era”, lamenta a jovem. Além disso, alega Mel, também havia ameaças. “Chegou a partilhar uma nude no Instagram de uma das raparigas a quem tinha roubado a conta porque ela o estava a ameaçar. Ou seja, expô-la não num daqueles grupos porcos, mas sim numa rede social dita ‘normal’”, conta.

Quais as intenções?

Nesse mesmo mês, Mel foi à polícia juntamente com uma das raparigas, menor de idade. “Foi ela que veio ter comigo uma vez num café. Achava que era eu quem lhe estava a fazer aquilo. Veio-me perguntar o ‘porquê’. Acabámos por ir as duas reportar o que se estava a passar. Aliás, não fomos as únicas. Houve várias queixas por todo o país. Sei de algumas em Lisboa, Coimbra, Aveiro. Foram simpáticos na PSP, escreveram tudo e disseram que iam passar para as autoridades competentes nestas situações… Até hoje, nada”, denunciou. “Não houve retorno e eu não percebo porquê. Mas porque é que não fazem nada? O homem continuou durante imenso tempo, não sei se ele continua a fazer isto, mas é possível, porque no ano passado ainda acontecia”, alerta.

Interrogada sobre qual pensa ser o objetivo da pessoa que está por trás do “esquema”, a jovem acredita que seria recolher nudes “para poder vendê-las”. “Rouba-me a conta, vai falar contigo porque sabe que somos amigas, depois rouba-te a ti, utiliza a tua conta, vai falar com a tua prima, rouba a conta dela… Isto é uma suposição, mas é naquilo em que acredito”, afirma, acrescentando que existe uma diferença entre a Mel que era e a Mel que é. “Sinto que ficou cautelosa com redes sociais, apesar de eu tentar que isso não me afete. Acho que antes era mais aberta… Existe sempre um medo, uma falta de confiança nas pessoas”, revela.

O que mais a entristece nem é a exposição, porque aquilo que foi partilhado nas contas era mais ou menos aquilo que esta já tinha partilhado nas suas redes. “Eu partilhava semi-nudes, não tinha pudores. O que mais me enfurece é o que fazem com as menores, desprotegidas e ingénuas. Eles não tinham direito de partilhar coisas que eram delas. Nós tiramos fotografias e enviamos para quem queremos, não é para correrem grupos e grupos de homens perversos. É invadirem-nos, invadirem o nosso espaço, o nosso corpo, a nossa confiança, a nossa intimidade”, garante. Mel acredita que ainda existe muito preconceito relativamente a isso. “Todos os homens querem receber nudes, querem ver meninas nuas. Mas quando uma mulher partilha porque quer, é ‘horrível’. Só é mau quando nós temos controlo sobre a nossa sexualidade. Quando eles têm, não é. Quando é roubado, não é. É uma forma de se retirar poder. Isto são abusadores. A maior parte da sociedade ainda acredita que tem de ter controlo sobre a mulher, sobre o seu corpo. É uma coisa tão pouco falada. Está tão implícito naquilo que a maior parte das pessoas pensam. Felizmente, tentei não ficar com esse preconceito relativamente a mim própria. Essa culpa. É verdade que já não partilho conteúdos desses, mas foi por uma questão mais pessoal. Já não me identifico com isso. Mas não julgo quem o faça”, partilha.

Além disso, segundo Mel, em 2023, foram partilhadas fotografias de um grupo de Telegram, onde um rapaz andava a vender nudes de raparigas. Os homens tinham de pagar 30 euros para entrar no grupo. “Foram os próprios membros do grupo que se revoltaram quando apareceram fotografias de menores de idade. Eu conheço o rapaz, é daqui de Castelo Branco. Ninguém sabe dele. Não sei se os esquemas estão ligados, mas acredito que sim”, remata.

Um sentimento de impotência

Tal como Mel, Inês Marinho, fundadora da associação Não Partilhes, tem conhecimento do esquema. A jovem de 25 anos, feminista e ativista, foi uma das primeiras jovens a ter voz na luta contra o assédio sexual feito através da partilha de fotografias explicitas sem consentimento. Ela própria o sentiu na pele. Aos 15 anos, viu as suas fotografias em biquíni serem partilhadas num grupo nas redes sociais. Na altura, não se importou muito, acreditando que não passaria daí. No entanto, seis anos depois, a jovem recebeu uma mensagem de um colega a dizer que tinha um vídeo íntimo dela a circular na internet. Depois disso, decidiu criar a Não Partilhes, um lugar onde as sobreviventes destes crimes se podem sentir seguras e falarem sobre os seus casos. A associação promove sobretudo palestras com o objetivo de consciencializar o público para este tipo de crimes que segundo a mesma, são tão desvalorizados pelas autoridades.

“Isto é uma situação que já acontece no mínimo há dois anos. Alguém me hackeia a conta, através da minha conta veem quais as pessoas que me são mais próximas e enviam mensagem a dizer: ‘Está conteúdo teu espalhado, tenho um primo que trabalha na polícia se precisares de ajuda só tens de me dar as tuas passwords e o teu email’. Depois é um esquema de pirâmide que nunca mais acaba. Falam sempre através de uma pessoa de confiança”, afirma contando a mesma história que Mel. “Já soube de várias raparigas que tiveram fotos partilhadas contra o consentimento. Infelizmente não se faz muito para combater isso por parte da polícia. Sei de uma ou duas raparigas que apresentaram queixa e não tiveram grandes resultados. Quando eu falo deste assunto tenho bastantes pessoas a apoiar e a perceber. Não tantas a criticar. Mas sinto que existe muita falta de ação nestes casos”, lamenta. “É uma tática de cibercrime e assédio sexual online! Já afetou menores de idade, mas aos olhos da polícia não parece assim tão importante investirem num caso que já fez, com certeza, centenas de vítimas”.

Um crime complicado de provar

De acordo com Mariana Narciso Rolo, a narrativa apresentada suscita preocupações devido à “intrusão na privacidade pessoal no âmbito digital”, revelando uma “faceta sombria deste universo”. Segundo a advogada, lamentavelmente, a situação descrita não é “tão rara quanto se poderia pensar”, sendo frequente a ocorrência de casos de divulgação não consensual de conteúdos explícitos, vulgarmente conhecidos como nudes, sem o devido consentimento das partes envolvidas. “Esta problemática é evidente em grupos do Telegram e noutras plataformas, nos quais os conteúdos são partilhados entre os membros, no entanto, não se limita a isso. Também se observam casos que surgem na sequência de vingança ou violência nos relacionamentos, conhecidos como pornografia de vingança”, explica a especialista. Apesar de não ser uma novidade absoluta, afirma, a divulgação não consentida de aspetos da intimidade alheia viu-se intensificada pela globalização, “ampliando exponencialmente o leque de destinatários, aumentando a velocidade de disseminação para níveis sem precedentes e causando danos irreversíveis às vítimas à medida que as partilhas se multiplicam incessantemente”.

Enquanto profissional, Mariana Narciso Rolo encara estes casos com “profunda preocupação”. “A realidade é que ninguém está totalmente a salvo”, alerta a advogada. Segundo a mesma, com a evolução tecnológica, esta nova forma de criminalidade online – o cibercrime – tem também evoluído. “Podemos definir cibercrime como as atividades criminosas que são realizadas através do meio digital, utilizando tecnologias da informação e comunicação”, esclarece, acrescentando que essas atividades envolvem o uso indevido de computadores, redes, dispositivos eletrónicos e sistemas informáticos para perpetrar crimes. “Uma maneira eficaz de combater o cibercrime consiste na implementação de legislação atualizada para abranger novas formas de cibercrime e garantir que as penalidades sejam proporcionais à gravidade dos delitos”, defende. No entanto, continua, observa-se que “a implementação efetiva da legislação no contexto dos casos de divulgação não consensual de conteúdos íntimos depara-se com consideráveis desafios, especialmente na esfera da investigação”. “Identificar e responsabilizar os perpetradores nesses cenários requer uma abordagem meticulosa e coordenada que enfrenta diversas complexidades”, aponta. “A primeira barreira reside na dificuldade da prova e outro fator que compromete a eficácia no tratamento deste tipo de crimes é o dilema enfrentado pelas vítimas ao relatar tais incidentes”, lamenta.

De acordo com a especialista, a implementação de uma incriminação específica para os casos de divulgação não consentida de conteúdos íntimos, conforme estabelecido no artigo 193º do Código Penal, demonstra uma resposta legal direta a uma problemática emergente na era digital. Este dispositivo legal estabelece que “quem, sem consentimento, disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de imagens, fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, é punido com pena de prisão até cinco anos”. Adicionalmente, é crucial sublinhar que, se a divulgação não consentida ocorrer no âmbito de um relacionamento afetivo, atual ou já terminado, aplica-se o regime jurídico-penal da violência doméstica, conforme estipulado no artigo 152º n.º 8 do Código Penal, em que a pena é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo. “Nos casos em que ocorre o roubo de contas online e/ou invasão nas contas e/ou dispositivos, as respostas proporcionadas pela Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009) desempenham um papel crucial”, explica Mariana Narciso Rolo. Tais práticas podem ser subsumidas à prática do crime de falsidade informática, de acesso ilegítimo e interceção ilegítima. “Consequentemente, as penas associadas a esses crimes podem variar, abrangendo desde prisão até cinco anos e multas substanciais, conforme as circunstâncias específicas do caso”, acrescenta.