Há cerca de um mês, um jovem norte-americano foi notícia por conseguir derrotar o Tetris. Mas, ao contrário do jogo de blocos da década de 1980, as redes sociais de hoje são imbatíveis. Por mais horas que alguém passe ao computador ou telemóvel, jamais conseguirá derrotar o Facebook, o Instagram ou o Tiktok. Pode fazer deslizar o ecrã o tempo que quiser. Como um peixinho dentro de um aquário redondo, vai dar voltas e voltas sem alguma vez atingir o fim.
Será que já nos apercebemos de até que ponto nos tornámos dependentes da tecnologia? Para muitos, o telemóvel é a primeira coisa para onde olham quando acordam, à espera que saia dali uma ordem ou uma qualquer novidade. E a última que veem antes de fecharem os olhos para uma noite de sono. Alguns até dormem com o aparelho ligado.
“O sono absorve sete horas de um dia; a alimentação, as limpezas, a vida social, uma duração similar, seis horas e 55 minutos; e o trabalho, cinco horas e 13 minutos”, resume Bruno Patino no livro A Civilização do Peixe Vermelho (ed. Gradiva). “A estas 19 horas e oito minutos juntam-se as 12 horas e quatro minutos diários dedicados aos ecrãs, aos media e ao digital. Metade de uma vida. Metade comercializável de uma vida”.
A luz do ecrã funciona como uma droga e, além disso, os smartphones têm o condão de se transformarem naquilo que mais desejamos: videojogos, informação, compras, música, imagens.
A pena, a tabuinha e o rolo
Curiosamente, algumas das tecnologias que usamos hoje têm antecedentes muito recuados. A pen, por exemplo, um pequeno dispositivo USB para arquivar ficheiros, é um sucessor da caneta (a palavra inglesa pen vem do italiano ‘penna’, pois originalmente escrevia-se com o bico de uma pena de ave embebido em tinta).
Já o formato do tablet tem origem nas pequenas tabuinhas de madeira que eram cobertas com uma fina camada de cera na qual se escrevia com um estilete. A camada de cera podia ser raspada e renovada, um pouco como se apaga o giz numa ardósia, o que tinha a vantagem óbvia de permitir a reutilização destas tabuinhas (ou tabuletas), que haveriam de estar na origem do livro.
Mas ainda antes do livro (ou códice, com as páginas cosidas umas às outras), no Egipto, na Grécia e em Roma eram utilizados rolos: folhas compridas de papiro ou de pergaminho que se enrolavam em torno de uma vareta de madeira. Esse princípio está na base do scroll que fazemos hoje no ecrã do nosso computador ou smartphone: é como se estivéssemos a estender o rolo perante os nossos olhos.
Um livro de que nunca leremos a última página
Existe, porém, uma diferença decisiva entre o rolo da Antiguidade e o da era digital: este segundo não conhece limites. E até já há um nome para isso: scroll infinito. Ou seja, podemos desenrolá-lo quanto tempo quisermos. É como um livro de que nunca leremos a última página.
Um cenário ideal, refira-se, para os gigantes tecnológicos. Sem esse travão, podemos ficar em frente ao ecrã por tempo indeterminado, sempre curiosos em relação ao que virá a seguir. E as redes sociais são monstros que se alimentam do nosso tempo: quanto maior a parte das nossas vidas que lhes dedicamos, mais elas engordam – e engordam as contas bancárias dos milionários de Silicon Valley.
“O tempo é precioso, especialmente nas crianças”, apontava em entrevista ao i, em dezembro de 2021, o neurocientista francês Michel Desmurget, autor de A Fábrica de Cretinos Digitais (ed. Contraponto). “É uma moeda preciosa e estão a gastá-la em entretenimento que não constrói o cérebro e que, em muitos aspetos, torna mais difícil o seu desenvolvimento”, continuava. “Quando olhamos para os números, o que vemos é que crianças muito novas, com cinco anos, por exemplo, estão quase três horas por dia à frente de ecrãs. Chega-se aos oito anos e são cinco horas. Nos adolescentes são sete. Quando se soma até aos 18 anos, é o equivalente a 32 anos letivos”.
Mas também nos adultos as consequências da omnipresença da tecnologia podem ser desastrosas: alienação, estupidificação, interrupções constantes, acidentes nas estradas, pessoas incapazes de desligar do trabalho, famílias sentadas à mesa em que cada um está ligado ao mundo pelo seu ecrã, mas desligado do espaço que o rodeia.
Tempo de atenção: nove segundos
Outro aspeto que tem sido objeto de estudo e discussão é a diminuição dramática do tempo de atenção de crianças e adultos. “Aqueles que criam conteúdos têm de descobrir a fórmula que permite que o vídeo seja visualizado pelo menos durante três segundos, ou, no caso dos mais pacientes, dez segundos. Porque os utilizadores são impacientes: 30% deles não esperam pelo quarto segundo de um vídeo no Facebook, abandonando-o, já solicitados por outros alertas, outras ligações, outras notificações push”, escreve Bruno Patino em A Civilização do Peixe Vermelho. O jornalista francês compara o utilizador das redes sociais a um peixinho que nada às voltas num aquário redondo. “Foram os humanos que ali o puseram, e desculpam-se como podem: a memória do animal é tão pouco desenvolvida, a sua atenção é tão reduzida, que descobre um mundo novo a cada volta que dá ao aquário. A memória do peixe-vermelho, longe de ser uma maldição, é, para ele, uma bênção, que transforma a repetição em novidade e a pequenez de uma prisão no infinito de um mundo”.
A Google, continua Patino, “conseguiu calcular o tempo de atenção real do peixe. O famoso attention span. E este último é, efetivamente, irrisório. O animal é incapaz de manter a atenção fixada para lá de oito segundos. Após estes oito segundinhos, passa à frente e o seu universo mental reinicia-se”. O peixinho-vermelho faz reset no seu cérebro minúsculo e parte para outra.
E nos humanos? A resposta dos investigadores é perturbadora. “Os computadores da Google conseguiram igualmente estimar o tempo de atenção da geração Y. Aqueles que nasceram com a conexão permanente e cresceram com um ecrã tátil sob os dedos. Aqueles que, como nós, não conseguem evitar sentir uma vibração ao fundo do bolso; aqueles que, nos transportes públicos, não desviam o olhar do smartphone, concentrados no espaço-tempo do ecrã. O tempo de atenção, a capacidade de concentração desta geração […] é de nove segundos. Depois disso, o seu cérebro, o nosso cérebro, desliga. Precisa de um novo estímulo, de um novo sinal, de um novo alerta, de outra recomendação. A partir do décimo segundo. Ou seja, praticamente um segundo a mais que o peixe-vermelho”.
Esta incapacidade de concentração reflete-se no perfil das redes sociais e é por elas agravada. Se o twitter (atual X) na sua origem limitava as mensagens a 280 caracteres, o tiktok só admitia vídeos de até 15 segundos. Não por acaso, estas estão entre as dez redes sociais mais populares do momento. Juntas, têm perto de dois mil milhões de utilizadores.
Em síntese: o aquário é o smartphone ou o computador, que permite dar voltas e mais voltas em scroll infinito; e o peixe-vermelho somos nós, escravos das notificações e do brilho dos ecrãs. “Tornámo-nos peixes-vermelhos, fechado no aquário dos nossos ecrãs, submetidos ao carrossel dos alertas e das mensagens instantâneas”, conclui Patino. “A nossa mente gira sobre si própria, dos tweets aos vídeos do YouTube, dos snaps aos emails, dos lives às notificações push, das aplicações aos newsfeeds, das mensagens exageradas emitidas por um robô às imagens filtradas pelos algoritmos, das informações manifestamente falsas aos zumbidos mediáticos aflitivos. Como o peixe, julgamos descobrir um universo a cada momento, sem nos apercebermos da infernal repetição em que nos enjaulam as interfaces digitais às quais confiámos o recurso mais precioso de que dispomos: o nosso tempo”.
Dos 15 segundos à eternidade
Há coisa de um mês, Willis Gibson foi notícia em todo o mundo por ter derrotado o Tetris. Depois de três anos a praticar este famoso videojogo entre três e cinco horas por dia, o jovem americano tornou-se o primeiro jogador da história a superar os 999.999 pontos, limite para lá do qual a máquina já não consegue dar resposta. Até aqui, apenas a Inteligência Artificial havia conseguido semelhante proeza.
Mas, claro, o Tetris foi criado em 1985, por um engenheiro de informática da Academia Russa das Ciências. Quase quatro décadas depois, os programadores informáticos sabem fazer as coisas de modo a que os seus produtos já não sofram dessas fraquezas.
Por mais horas que alguém passe em frente ao ecrã do computador ou do telemóvel, jamais conseguirá obter a rendição do Facebook, do Instagram ou do Tiktok. Pode fazer deslizar a página inicial destas redes sociais o tempo que quiser, que nunca há-de atingir o fim.
É verdade que os filmes do Tiktok estão limitados a uma duração muito curta. Mas, paradoxalmente, isso faz com que percamos muito mais tempo com eles. Conseguíssemos nós somar todos os 15 segundos consumidos por esse mundo fora a ver filmes do Tiktok e obteríamos algo próximo de uma eternidade.