Sempre que Donald Trump fala de política internacional, ou ‘entra mosca ou sai coisa feia’. Na última semana, para surpresa de muitos, trouxe um problema antigo, cuja discussão é recorrente há décadas: o cumprimento das despesas militares por parte de alguns membros da NATO.
Claro está que muitos dos aliados europeus não o cumprem o acordado – em grande medida porque ainda acreditam que vivem na ‘ilha de paz’ sonhada com o final da Guerra-Fria. Todavia, manda um mínimo de realismo perceber que o que preocupa Trump não é tanto que a despesa militar cumpra o rácio orçamental acordado, mas sobretudo que os aliados invistam no ‘complexo industrial-militar’ dos EUA.
Quase todos os Presidentes e Secretários de Defesa dos EUA se têm preocupado com este facto, e quase todos os líderes europeus têm realizado os investimentos adquirindo material militar norte-americano, sabotando o desenvolvimento de uma indústria militar europeia.
A coisa passa bem, leia-se sobrevive com o cinismo habitual das relações internacionais, quando os líderes que se sentam à mesa têm modos e não ‘bolsam’ barbaridades em praça pública, criando desconfianças desnecessárias, particularmente quando nas fronteiras desses aliados europeus há uma guerra em curso.
Não obstante a agressividade desnecessária da personagem, note-se que tenho escrito recorrentemente a respeito da desconfiança entre os aliados, e como as divisões na sociedade norte-americana amputam qualquer perspetiva séria de uma estratégia coerente, como a que deu origem ao sistema de alianças no qual ainda depositamos fé. Em maio de 2020, escrevi um artigo online neste jornal, denominado Enquanto dormíamos, que a páginas tantas diz: «Em 1945, os EUA tinham um país unido e uma estratégia para confrontar a ascensão de uma potência revisionista. Criaram um sistema de alianças sólidas que, com o seu poder norte-americano, foram a base para vencer a Guerra Fria», hoje, «os EUA comportam-se como uma potência revisionista e fecham-se sobre si próprios».
Ainda que os EUA sempre tenham tido divisões internas a respeito do papel do país no mundo, que datam mesmo do período da guerra civil, o século XX foi marcado por uma visão comum. Bem ou mal, a ordem mundial do pós-Guerra-Fria decorria dessa visão e da capacidade de os EUA a imporem, dando garantias de segurança aos seus aliados.
Essas garantias, que já tinham sido amachucadas no início deste século, durante os mandatos de George W. Bush, ficaram seriamente postas em causa com a primeira presidência Trump. Hoje, os aliados dos EUA deixaram de saber com o que contam.
A reação europeia deveria passar por desenvolver capacidades militares próprias e entender que o manto protetor do lado de lá do atlântico passou a ser ilusório.
Acontece, em paralelo, que os EUA (potência global) há muito que perceberam que a sua principal preocupação está na região Ásia-Pacífico, para onde se transfere riqueza e onde se preocupam em conter o principal desafio estratégico: China.
Se atendermos quer às declarações de muitos dos chefes militares europeus, quer também a algumas decisões políticas dos países mais atentos, seja na região do ártico seja no leste europeu, onde as perceções das questões de segurança são mais evidentes, percebemos que a questão é bem real.
Nesta campanha eleitoral, curiosamente, ainda não ouvimos uma palavra sobre este assunto. O problema não é Trump, somos nós.