Quando conheceste o André Jordan?
Tenho de fazer uma ‘primária’, acho que partiu em paz para a grande viagem merecida. Teve, realmente, uma vida preenchida – há três meses que achava ele já tinha vontade de partir. A vida dele nunca foi assim, fechado numa casa, nunca foi uma vida inativa, foi a pessoa mais ativa que conheci, apesar de nunca ter sido uma figura de ginásios, nem de exercícios físicos. Mas era uma pessoa ativa em que a cabeça o obrigava a ser criativo. Conheci-o quando ele já era uma lenda no Rio [de Janeiro], por intermédio do Alberto Salema Reis, no Procópio, da Alice e do Luís Pinto Coelho, em 1972 quando o André começou o projeto da Quinta do Lago. Em 1974, quando estou quase a sair da tropa, sou convidado para ir jantar à Casa Velha, na Quinta do Lago, para depois ir à inauguração do Pónei e para a apresentação da Quinta do Lago.
Isto em pleno período de Revolução. Sim, disseram-me que ia estar aquele brasileiro amigo do Salema Reis, e lá fui à inauguração do Pónei em que a Anica era a gerente.
Quem foram os primeiros residentes da Quinta do Lago?
O André Gonçalves Pereira e o Pedro Leitão e depois o Rudi, que tinha uma discoteca em Faro, onde o José Manuel Trigo trabalhava. Quando a Casa Velha foi inaugurada a casa redonda de André Gonçalves Pereira ainda nem tinha janelas.
Onde é que o conheces verdadeiramente, o que te fascinou nele?
Depois desaparece tudo, a Quinta do Lago é ocupada durante o PREC, e o André vai para o Brasil. Em 81/82, quando o Bananas abre em Lisboa, reencontro o André, que tinha recuperado a Quinta do Lago. Deu um jantar no Bananas para festejar a recuperação da Quinta do Lago. Volta em 81/82, leva o Trigo, que fez parte da recuperação da Quinta do Lago, o Fernando Ferramentas e a Anica. Eu nem sonhava sair dos seguros e ser tasqueiro de praia, mas acompanhei o desenvolvimento do projeto. Nessa altura, a Quinta do Lago não tinha dinheiro, apesar do André já ter vendido uma parte, era uma luta titânica do André. O acreditar de um sonho fazia-o não desistir. Fez o Open de Portugal de Golfe, salvo erro em 84/85, tudo sem dinheiro e a tentar vender um novo destino. André começa esse projeto de luta, e eu entro, convidado pelo Manecas Moceleck, na Quinta do Lago. O Manecas depois foi para o Pátio. Íamos para o Passos almoçar e dizia ao Manecas que a coisa mais bonita, isolada, que tinha visto no mundo, era o pavilhão da praia da Quinta do Lago.
Onde estavam uns chilenos a explorar o pavilhão. Sim, uns chilenos. O André, com o seu espírito de democrata, entregou o pavilhão a uns músicos chilenos que tinham fugido ao Pinochet, que eram os Naraenos. Aí volto à Quinta do Lago e até fiz uma frase: ‘Aos 35 anos, grandes decisões. Troquei o fato e a gravata pelos calções’. Na altura estava para mudar, já tinha começado o projeto da loja do vinho no Bairro Alto, estava doido para saltar para a hotelaria, e estava a vender a minha parte dos seguros. Temos um almoço com o André, eu e o Manecas Moceleck, que tinha lá estado mas não queria a praia. Cheguei atrasado ao almoço – tive um furo no caminho e algumas peripécias na véspera. No final do almoço, o André fez-me uma pergunta: ‘Oh Gigi, você é o meu segurador, trabalha em seguros, e agora quer trabalhar na hotelaria?’. Olhe, André, tive três grandes professores, barra do Gambrinus, Manecas Moceleck e Joaquim Machaz, o meu irmão Miguel também me tinha influenciado muito, além do meu irmão João, que financiara a abertura da pousada no Brasil. Expliquei que não tinha experiência, mas tinha vontade de trabalhar. Quando me meto num projeto dedico-me sempre a 100%, não vacilo. Ele respondeu: ‘Está fechado. Um ano de experiência e depois fazemos um contrato por cinco’.
A partir daí constroem uma amizade especial.
Eu na altura ainda usava foguetes e aquilo (festa) foi um bocado violento. Mas tive uma coisa igual ao André, que foi virar-me sempre para quem verdadeiramente gostava da Quinta do Lago. E senti verdadeiramente que ali ‘rolava’ o melhor que há no mundo. O famoso hoje em dia aqui corresponde a ‘pendura’, almoços à borla, promoções de praia devido a benesses, ali o famoso era ser discreto, bem tratado, ser bem recebido, e gostavam verdadeiramente de Portugal. O André sempre teve equipas felizes. Hoje em dia sou o mais velho, já morreram muitos, resto eu e o Fernando Braga, que está reformado, que chamo carinhosamente por Braguinha, eu estou reformado mas não estou. No meio disso tudo, ‘rolando’ mesmo sem dinheiro, aliás, o dinheiro para ele não era importante – curiosamente acabou outra vez com dinheiro. O importante era o sonho, vi e ouvi o João Gilberto na Quinta do Lago. O João Gilberto que era o artista mais difícil do mundo, um dos melhores amigos do André. A lenda, vi na Quinta do Lago, a 20 metros, no Bar Alice. Ah! À última da hora não queria cantar, numa das suas birras, e foi lá o André, com a Alice, e ‘obrigaram-no a pegar na viola e a ir cantar. Tive muitas cumplicidades com o André. A paixão pelo Algarve era tanta que financiou um relvado do Olhanense. Apesar de ser Botafogo financiou o Olhanense por ter as cores do Flamengo, vermelho e preto. Ele diz ‘Eh pá, tem no Algarve um ‘time’ que tem as mesmas cores do Flamengo?’ [risos] Eu, que me considero o emigrante mais algarvio do que os algarvios, talvez seja batido pelo André Jordan. Ele foi, verdadeiramente, o Algarve. No tempo do Procópio tinha ouvido aquela história de que o André era jornalista, tinha ouvido como é que a Quinta do Lago foi imaginada, nós falávamos, o André imaginou a Quinta do Lago porque esteve na Argentina como jornalista, foi um cidadão do mundo, e foi a Punta del Este [Uruguai], que era o balneário dos argentinos milionários à época, e em Punta del Este havia um aldeamento, um resort como se diz agora, com rotundas. 50 anos depois, fui a Punta del Este, por causa do casamento do meu filho Duarte, para descobrir o sítio onde o André imaginou a Quinta do Lago.
O André cultivava as amizades.
Sim, o André durante a sua vida sempre prestigiou os amigos, fosse o senhor Pires, responsável pelos espaços verdes e um faz tudo, valorizou o José Manuel Trigo, que ‘desviou’ a Avenida André Jordan para fazer lotes de um lado e do outro. Acho que o André para falar da sua obra, falou sempre dos amigos, e do staff dele, onde me incluiu, apesar de eu ser ‘independente’, não era empregado da Quinta. O empregado mais antigo dele, o Fernando Braga, quando foi contratado alugou o seu carro à empresa. Não sei se era por falta de dinheiro, pois o André era o campeão da poupança. Sabia o nome de 90 ou 100% dos seus funcionários e teve sempre pessoas que acreditavam nele. Ah! Muito importante, nunca o vi lamentar-se mesmo quando os negócios lhe correram mal. Tinha todo o charme do mundo.
O André também tinha os seus ‘inimigos’.
Tem uma frase à brasileira que diz que dois bicudos não se beijam. E foi uma pena o Van Gelder e o André não se terem juntado. Se tivesse havido ali uma, digamos, aliança atlântica, um Tratado de Tordesilhas, talvez aquela parte do Vale do Garrão, tudo aquilo a caminho do Ancão, não existiria. Existiria um Vale do Lobo até à rua para o Ancão e uma Quinta do Lago dessa rua para lá, sem haver aqueles aldeamentos no meio.
Já temos o lado humanista dele, os empregados…
Aprendi uma coisa fantástica com ele, a Quinta do Lago tinha um orçamento barato, mas transportava o pessoal. Tinha uma camioneta que os ia buscar e levar, coisa que eu aprendi também. Um dia, e estamos a falar do princípio, perguntei-lhe se a camioneta podia dar boleia a um empregado que tinha para os lados de Salir. Eu era um independente da Quinta do Lago, e ele falou lá para a segurança e disse: ‘Está aqui o nosso Gigi’. Fiquei contente pois achei que me estava praticamente a integrar no ‘time’ do acreditar na Quinta. O que era e é verdade’. E passaram a transportar o meu empregado de Salir.
Há uma história engraçada com o Lech Walesa.
Sim, já o André tinha vendido a Quinta do Lago – curiosamente depois disso ainda aprofundámos mais a amizade. O André, nessa altura, atravessava a ponte que dá para o restaurante e para a praia, e um dia, para aí há 20 anos – adorava falar comigo e sempre foi um curioso, curioso não calhandreiro, gostava de saber como estava o turismo, como se diz no Brasil, sentir o mercado – ele estava no restaurante, pois nunca perdeu o cordão umbilical à Quinta. Era muito frugal, comia linguado ou pregado grelhado simples, sem molhos, só com legumes. A dada altura entrou uma figura que não me esqueço, que era verdadeiramente uma figura da nossa história contemporânea, só lhe faltava vir rodeada de uma aura luminosa. Esta figura, que vinha com quatro guarda-costas, ainda do tempo antigo do lado de lá da Cortina de Ferro, tinha um cajado na mão, e no casaco tinha a imagem da Virgem de Cracóvia, e sentou-se na mesa dois. O André entrou e perguntei-lhe se sabia quem estava ali sentado. Está ali o seu patrício que mudou o mundo: Lech Walesa. O André foi lá, os guarda-costas até estranharam, não ficaram agressivos, mas ficaram de alerta, e falou em polaco, a língua materna e paterna dele. Depois foi à Polónia convidado pelo Lech Walesa
Recordas-te de outras histórias engraçadas?
Na fase brasileira dele, tinha dois grandes amigos ‘brasileiros’ e sofri muito com isso. O António Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, [fundador do Bradesco e empresário de grande sucesso] e não se podiam nem cheirar. Não sei o que se passou, nem interessa, mas no Brasil dizia-se: ‘Não sentem à mesma mesa António Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, e o André Jordan’. Por acaso, consegui sentá-los à mesma mesa, no Gigi. Nesse momento, o André disse para o Braguinha: ‘O Gigi é o campeão das boas intrigas’. Agora, se calhar, estão no céu, sentados à mesma mesa como estiveram no Gigi. O André depois de vender a Quinta fez Belas e acabou mais tarde por aceitar um convite para fazer o projeto Vilamoura XXI, com investidores convidados, e com Arnold Palmer [lendário golfista], que fez o projeto Vitória [campo de golfe]. Escolheu sempre os melhores para os seus projetos. Mesmo quando estava em Vilamoura ia ao Gigi. Éramos irmanados no nosso amor ao Algarve. A grande paixão dele pelo Algarve é fascinante. Aliás, há seis meses, já não estava muito bem, mas comprou uma suíte num hotel do Monte da Quinta. Perguntei-lhe por que comprou uma suíte e não uma casa, e respondeu-me: ‘Sabe que aqui tem serviço de hotel, numa casa estou muito limitado. Assim, posso vir ao Algarve e tenho um serviço de hotel na minha própria casa’. Continuava a acreditar. Só que ele se foi muito abaixo no último ano, devido ao problema de não andar. Desporto não era com ele. Também não bebia muito e era um pisco a comer. Uma vez foi lá a casa comer um pregado, não foi à praia pois já tinha dificuldade em andar, mas a primeira coisa que aconteceu foi uma grande medalha na camisa de linho. Isso acontecia sempre [risos]. Na segunda-feira foi para a última morada onde vai ficar na sua paz eterna. Comprou o talhão há bastante tempo, em Almancil, em frente ao Centro Cultural S. Lourenço, de quem foi grande fã e amigo de Volker e Marie Hubber. Fez sempre muita questão de ficar ligado à zona de Almancil. Tinha tudo organizado e ‘brigava’ muito por causa da Igreja de S. Lourenço [paredes meias com o cemitério] porque dizia que o único problema era o despertador da igreja que tocava de hora a hora.