Lisboa em risco: neonatologia sem médicos e enfermeiros

Hospitais de Lisboa e Vale do Tejo com falhas na neonatologia causam insegurança nos profissionais e risco para os bebés.

No início do ano a Direção Executiva do SNS (DE-SNS) elaborou «um plano estratégico, em rede, numa abordagem sistémica, que permite soluções sustentadas, com segurança e qualidade para as grávidas, crianças e suas famílias», lê-se na deliberação 215/2023 de 31 de dezembro. Para fazer face à falta de médicos especialistas em obstetrícia e ginecologia e para responder à indisponibilidade dos médicos para assegurar serviços de urgência para além das 150 horas de trabalho extraordinário anual, a DE-SNS reorganizou a rede em todo o país. No entanto, na zona de Lisboa e Vale do Tejo, não assegurou que essas alterações fossem acompanhadas com um reforço ou reorganização dos serviços de neonatologia. E o resultado é que o hospital Beatriz Ângelo, em Loures-Odivelas, assim como outros hospitais da zona de Lisboa e Vale do Tejo, estão sem elementos suficientes na equipa de neonatologia para responder e assistir bebés prematuros.

Por força desta deliberação, em particular o Beatriz Ângelo passou a ter desde o início do ano os serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia a funcionar sete dias por semana e 24 horas por dia. Um funcionamento ininterrupto que dá resposta às grávidas encaminhas dos hospitais de São Francisco de Xavier, Amadora-Sintra e Santa Maria. E isto porque o bloco de partos de Santa Maria continua fechado para obras e com esta organização o SU funciona apenas para a ginecologia. No S. Francisco de Xavier e no Amadora-Sintra as urgências em ginecologia e obstetrícia, assim como o bloco de partos, também viram o horário reduzido. As equipas de urgência deste serviço estão completas, mas a neonatologia ficou esquecida. Má distribuição, assimetria dentro dos mesmos hospitais e escassez de meios estão a pôr em risco a saúde destes bebés, alertam os médicos e os responsáveis hospitalares.

Tudo para o Beatriz Ângelo

Foi no final do ano que a administração do Beatriz Ângelo foi informada que o S. Francisco de Xavier iria deixar de estar aberto 24h/7 dias por semana – depois de este hospital se ter equipado e reforçado as equipas para responder ao encerramento de Santa Maria. Passava, assim, a ser Loures e Odivelas a substituir o hospital do Restelo. O problema é que há uma grande assimetria entre os serviços de obstetrícia e neonatologia. Ou seja, preocuparam-se com a parte da unidade de obstetrícia, em reforçar os médicos e fazerem equipas para não fecharem à população, e não se preocuparam se havia lugar para os bebés», contou ao Nascer do SOL uma fonte hospitalar. E acrescentou: «Andamos sempre aflitos a prever onde é que vamos conseguir colocar os prematuros, porque na verdade não temos vagas para todos». Além disso, não é aconselhável que «os prematuros andem a passear de um lado para o outro como sistema».

Este constrangimento não é apenas no Beatriz Ângelo, mas em toda a região de Lisboa e Vale do Tejo no que se refere aos serviços de neonatologia. Desde equipamento velho, poucos ventiladores, falhas na equipa de enfermagem e escassez de médicos com a especialidade em neonatologia, as dificuldades atravessam todas as unidades hospitalares desta região. Muitas vezes apenas está ao serviço um elemento das equipas de neonatologia, quando é obrigatório que estejam dois. «Felizmente, na maioria dos casos estão dois elementos. Mas há dias só com um. E basta um ou dois dias sozinhos e já é demais», relatou ao Nascer do SOL outra fonte de um hospital da região de Lisboa. A risco é eminente: «Alguma coisa pode correr mal e se só tivermos um neonatologista de presença física é uma insegurança e um risco para a saúde desse bebé. Estamos de mãos atadas porque, enquanto os obstetras fecham a admissão quando não têm equipas, a neonatologia não pode fechar. E temos de rezar para pedir que nada corra mal», declarou a mesma fonte.

A DE-SNS já foi informada destas dificuldades e da insegurança que se vive nestes serviços e deu indicações às administrações hospitalares para contratarem prestadores de serviço. No entanto, os médicos em regime de prestação de serviço das urgências têm pouca disponibilidade para fazerem de segundo elemento das equipas, uma vez que trabalham e têm as suas escalas de urgências noutros hospitais. Além disso, há escassez de médicos em neonatologia.

No fio da navalha.

Enquanto não se resolve esta situação, os médicos especialistas sentem que estão todos os dias a trabalhar no fio da navalha. Além do risco para os bebés, há ainda a responsabilidade em termos legais caso alguma coisa corra mal e com isso arriscam a própria carreira por estarem sozinhos a assegurar um serviço que exige dois elementos. Havendo duas urgências, é provável acontecer «ter de assistir a um bebé que esteja em estado grave e ter de ir para a sala de partos para salvar outro e não há como estar dois sítios ao mesmo tempo», advertiu um médico ao Nascer do SOL. Para agravar a situação, verifica-se ainda a transferência destes médicos para os privados, que estão com maior movimento e necessidade em contratarem segundos elementos de neonatolgia. Uma das alternativas aos prestadores de serviço seria recorrer aos internos de pediatria que fazem cuidados intensivos, mas nem isso é possível no Hospital Beatriz Ângelo. E isto porque a rede de referenciação hospitalar – que é o que define o que cada unidade pode aceitar – não está atualizada. A rede de referenciação hospitalar concluída em julho ainda não está aprovada e neste hospital não está definida qual a diferenciação que podem ter. Também com as equipas de enfermagem, o rácio não é cumprido. Nos cuidados intensivos destas unidades deveria ter, pelo menos, um enfermeiro por duas crianças e em cuidados intermédios um enfermeiro para quatro crianças. No entanto, são muitas as vezes em que o rácio é de quatro bebés em cuidados intensivos para um enfermeiro. Com o novo de regime, que prevê contratos de 40 horas com ordenados de 35, houve várias enfermeiras com experiência que também saíram para o setor privado. Tornado ainda mais complicado responder a esta nova organização. «Vive-se todos os dias com o credo na boca. São raros os dias em que se pode dizer que está tudo bem, que não há problemas», contou um responsável ao Nascer do SOL.