O despacho de não pronúncia de Helena Lopes da Costa, de António Preto e de todos os outros arguidos no processo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em que o juiz de instrução, Nuno Dias Costa, mais uma vez considerou a acusação deduzida pelo Ministério Público de ser «coxa» e «manifestamente infundada» – por considerar que os «factos descritos não constituem crime» -, tornado público nesta semana, é mais um exemplo do estado a que chegou a Justiça portuguesa. Lastimável, seja qual for a leitura que se faça.
Mas nem o facto de estar no centro das crises políticas que estamos a viver na República e na Madeira faz com que a Justiça seja tema da campanha eleitoral ou prioridade nos programas eleitorais dos partidos.
A batata é quente e queima. E para quem tem rabos de palha…
Em 50 anos de democracia, é consensual o reconhecimento de que, desde a Constituinte, a qualidade do legislador tem vindo a diminuir progressivamente.
Na razão praticamente inversa da produção legislativa.
Logo, a qualidade das leis ressente-se e, com mais e más leis, não pode haver boa Justiça.
A quantidade e a qualidade das leis, porém, não desculpam tudo.
O problema agrava-se quando, neste quadro, os responsáveis pela aplicação dessas leis, ou seja, os magistrados – judiciais e do Ministério Público – são impreparados ou desprovidos de razoabilidade, bom senso e sentido de missão e de serviço à comunidade.
Como me fez chegar mão amiga – de profundo conhecedor do setor criminal e não criminal, com décadas de vivência na barra dos Tribunais -, a reforma da Justiça não pode dissociar-se dos problemas ao nível das pessoas e concretamente dos magistrados judiciais e do MP.
Lembra-me, por exemplo, que os magistrados começavam como delegados do procurador da República em comarcas de província e, conforme cresciam em idade e em experiência e saber social e sobre o comportamento humano, aproximavam-se das capitais de distrito e comarcas mais populosas e, por norma, com casos de maior complexidade.
E iam sendo promovidos em consonância, passando uns a juízes ou subindo na hierarquia do MP.
Já a entrar na década de 80 do século passado, a criação do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), com a separação das duas magistraturas em carreiras distintas e estanques, passando nós a ter juízes e procuradores do MP muito novos em idade e com muito pouca experiência de vida ou preparação em comarcas como Coimbra, Lisboa, Porto, Oeiras, Loures ou Sintra.
A cultura do CEJ tratou de fazer com que as magistraturas deixassem de trabalhar como servidores da Justiça com um espírito de colaboração ativa entre si e com os demais agentes da Justiça, incluindo os advogados representantes das partes.
A formação parece, aliás, passar por incutir nos magistrados uma mentalidade de falta de diálogo seja com quem for, arrogando-se eles de se julgarem a ‘última coca-cola do deserto’.
Independentemente de a quem possa assistir a razão, é impossível haver leituras tão díspares sobre os factos como a que fizeram os representantes do MP e o juiz de instrução em casos como os da Operação Influencer, que conduziu à demissão de António Costa e a eleições antecipadas na República, ou da Operação Zarco, que levou à demissão de Miguel Albuquerque e à queda do governo regional da Madeira.
Os desenvolvimentos havidos num e noutro caso só justificam a estupefação maior e a descredibilização dos magistrados e, assim, de todo o edifício da Justiça.
Um tribunal não é um coliseu ou uma feira de vaidades, nem uma arena em que os juízes botam sentenças à toa, o MP persegue quem quer ou bem entende e os advogados recorrem aos meios que a lei lhes dá para adiarem ou impedirem que se faça Justiça.
E se mal vai no setor criminal, é uma igual desgraça no setor não criminal (os tribunais administrativos e fiscais são um cancro pela lentidão e, por isso, tantas vezes também inutilidade dos seus procedimentos). Há processos com mais de 30 anos de pendência em primeira instância, casos à espera de sentença com julgamentos terminados há mais de um ano, juízes de círculo (portanto, já com experiência) que dizem em plena audiência que nunca em julgamento em que tenha participado se descobriu a verdade, magistradas que interrompem diligências a que presidem porque têm de ir buscar os filhos à escola… é o que mais temos.
No sistema instituído – em que o CEJ se afirma como escola de corporativismo como nunca antes se viu -, e não obstante esta realidade crítica, há demasiada impreparação, falta de mundo, incompetência, preguiça, desinteresse, mas também, ou por outro lado, excesso de protagonismo, arrogância ou incapacidade de distanciamento ou de resistência a motivações pessoais, culturais, políticas, religiosas ou corporativistas.
É por isso que não vale a pena julgar-se que o problema da Justiça está na lei, por má que ela seja e por pior que possa ser a preparação ou a intenção do legislador.
O problema está nas pessoas, na sua formação e na sua gestão.
Basta atentar na forma como os magistrados são avaliados por outros magistrados, numa lógica obviamente corporativista e da ‘clique’ instalada.
Haverá, aliás, outra profissão em que 90% dos avaliados tenham nota equivalente ou superior a ‘Bom’? Ou seja, todos têm praticamente ‘Bom’ ou ‘Muito Bom’ (ou equivalente a ‘Relevante’ e ‘Excelente’).
Enfim, parece mesmo que não são razoáveis no seu melhor sentido.
Como é possível que dois juízes tão diferentes e com interpretação e aplicação das leis tão díspares como Carlos Alexandre e Ivo Rosa sejam ambos avaliados com ‘Muito Bom’ e ambos promovidos aos Tribunais superiores?
Não seja por mais nada, mas um dos princípios fundamentais de um Estado de Direito Democrático é que haja segurança na Lei e na Justiça.
E não há Justiça quando tudo depende da pessoa ou magistrado que pode sair em sorte, tipo ‘cara ou coroa’. Sendo que também a distribuição dos processos é o que sempre foi e a intervenção dos Tribunais superiores, se serve para corrigir enviesamentos ou erros cometidos, peca demasiadas vezes por tardia ou já não absolutamente eficaz.
A Justiça não pode ser uma roleta russa!
E, ao fim de dois anos, o que fez a ainda ministra da tutela? Pois…