Farfetch. A queda do primeiro unicórnio português que foi ‘salvo’ pelo fundador da ‘Amazon coreana’

Empresa lançada por João Neves passou de start-up para o primeiro unicórnio português. Vendas disparam, entrou em bolsa nos Estados Unidos, mas o brilho desapareceu e no final do ano passado foi salva pelo dono da Coupang. Fundador português abandonou agora o cargo de CEO e deixa um rasto de despedimentos.

Juntar a moda e a tecnologia. Foi esta a fórmula de sucesso encontrada por José Neves que conseguiu assim juntar as suas duas paixões. Nasceu assim a Farfetch que rapidamente passou de start-up para o primeiro unicórnio português e estreou-se em Wall Street, permitindo-lhe arrecadar o título de gigante tecnológico. Mas depois de anos de sucesso, nem a visão, nem a ambição de José Neves conseguiu travar a queda da empresa que conheceu no final do ano um novo acionista evitando à última hora a sua falência. A saída do português como CEOfoi anunciada a 15 de fevereiro, assim como a saída de até 30% dos trabalhadores. «Após uma cuidadosa consideração, decidimos simplificar o negócio para nos permitir operar a partir de uma posição de solidez financeira e focar no que fazemos de melhor: oferecer experiências excecionais para marcas, boutiques, clientes FPS e clientes. Esta nova organização, mais bem estruturada, continuará a avançar com velocidade para desbloquear todo o potencial do espaço de luxo online em que a Farfetch foi pioneira», diz o email enviado aos trabalhadores.
A plataforma de venda de marcas de moda de luxo na Internet surgiu em 2008 e chegou a valer cerca de 20 mil milhões de euros. Mas o seu auge deu-se com a entrada em bolsa no mercado norte-americano, em setembro de 2021 com cada título a valer 27 dólares (quase 25 euros), chegando a atingir os 73 dólares (mais de 67 dólares). Cinco anos depois o brilho acabou com as ações a valerem cêntimos – o que significou que quem investiu na sua estreia perdeu quase a totalidade do seu investimento – e a venda dos ativos e do negócio ao grupo sul-coreano Coupang que é considerado uma espécie de Amazon tornou-se imperativo.

Apesar de não ter qualquer ligação ao mercado de luxo, a Coupang, fundada em 2010 sob a liderança de Bom Kim – que se tornou milionário aos 40 anos, quando o SoftBank Vision Fund investiu dois mil milhões de dólares (mais de 1,8 mil milhões de euros ) na Coupang – é uma das maiores retalhistas de comércio eletrónico do mundo, conhecida pelo seu rápido crescimento e inovação no setor do retalho, contando atualmente com operações na Coreia do Sul, Taiwan e Japão, tendo entretanto transferido a sua sede para os Estados Unidos.

O que correu mal?

Depois de ter beneficiado dos anos da pandemia, em que as vendas online subiram, a empresa deixou de crescer. O valor das ações caiu a pique, obrigando a Farfetch a adiar a apresentação dos resultados do terceiro trimestre. Mais tarde foi a vez da agência de rating Moody’s baixou ainda mais a classificação de crédito da empresa para território de ‘lixo’ e colocou-a em revisão para um novo corte, citando a deterioração da sua posição financeira.

É certo que nos cinco anos em que esteve em bolsa, a Farfetch somou prejuízos de 2,5 mil milhões de dólares (mais de 1,8 mil milhões de euros ). Umas perdas que chegaram a ser justificadas por José Neves pelo facto de a empresa ainda manter a sua aposta no investimento. No entanto, a sua entrada em bolsa foi acompanhada por pompa e circunstância. «Um comprador em Londres poderia ter uma botas de uma pequena loja de Paris e um cliente de Pequim poderia encomendar uma carteira a oito mil quilómetros de distância, em Veneza», chegou a divulgar o The New York Times. A mesma publicação no final do ano passado já referia que a empresa «tem estado a lutar pela sobrevivência».

O negócio com os sul-coreanos e que envolveu um empréstimo-ponte de 500 milhões de dólares (mais de 562 milhões de euros) surgiu como uma tábua de salvação. Um desfecho que veio contrariar as esperanças expressadas pelo ministro da Economia português que admitiu que as empresas « têm altos e baixos» e que esperava que a situação estabilizasse para que a Farfetch pudesse regressar «àquilo que foi antes».
Em marcha está ainda um plano de despedimentos a nível global. A empresa conta com cerca de 6.800 colaboradores, dos quais cerca de 3.000 estão sediados em Portugal, nos escritórios em Braga, Guimarães e Matosinhos, os despedimentos poderão abranger mais de dois mil trabalhadores.

Brilho em queda livre

Em 2017, quando o Nascer do SOL fez um trabalho sobre a Farfetch, o diretor-geral da empresa, na altura, recordava o sucesso do negócio. «A ideia surgiu em 2007 numa Paris Fashion Week, quando José Neves percebeu que as boutiques de moda de luxo compravam cada vez menos e, pelo contrário, os negócios online compravam cada vez mais. Isto potencialmente criava um problema para o negócio dele que se traduzia em menos encomendas e muito concentradas numa pequena parte da coleção, pondo em risco a diversidade da mesma», disse Luís Teixeira.

E mesmo com o negócio a ter sido criado num ambiente de recessão e dificuldade reconheceu que foi um sucesso desde o início. «A Farfetch acabou por surgir como uma solução aparentemente simples mas muito criativa, que juntou duas paixões: a moda e a tecnologia. A ideia acabou por se transformar numa receita de sucesso muito também pelo facto de surgir para fazer face a um problema real e permitir que as boutiques, enquanto comunidade, pudessem aceder ao mercado global e competir com os gigantes do online».

Mas o crescimento rápido prometido, na altura, pela empresa parece ter trocado as voltas à sua sustentabilidade. A palavra de ordem era continuar a crescer, mas a um «ritmo acelerado», mas esta ideia aliada à diversificação do negócio chegou a ser apontada pelos analistas como um problema que teria de ser resolvido com «foco num core».