Um retrato do país

Quando me falam na ‘geração mais qualificada de sempre’, sorrio. O sistema de ensino está formatado para distribuir canudos e não para formar as pessoas de que o país precisa. E já nem falo da emigração dos mais afoitos.

Ouvimos constantemente dizer que esta «é a geração mais qualificada de sempre». Temos jovens muito qualificados, com mestrados e doutoramentos, mas queremos um eletricista e não encontramos, queremos um canalizador e não encontramos, queremos um carpinteiro e não encontramos.

Em Estremoz, havia um ferreiro que parecia transitado diretamente da época medieval. A sua oficina funcionava na antiga prisão, encostada a uma das portas da cidade. Era um grande espaço circular, branco, sem janelas, fechado em cima por uma cúpula com uma abertura pela qual entrava a luz natural.

O chão era ocupado em boa parte por uma montanha de ferros de todos os tamanhos e feitios, que esperavam o dia de virem a ser reutilizados.

O ferreiro trabalhava num canto, onde estava o torno.

Tinha a porta sempre aberta, entrávamos livremente, às vezes tínhamos de esperar uns momentos para ele acabar o que estava a fazer – uma soldadura, a dobragem de um ferro em brasa -, depois parava, tirava a máscara e atendia-nos, sempre com um sorriso hospitaleiro.

Um dia contou-nos, abatido, que o filho mais novo tivera um grave acidente de automóvel e estava em risco de ficar paraplégico, o que infelizmente aconteceu.

E ele nunca mais foi o mesmo. Perdeu a alegria. Um dia, subitamente, chegou-nos a notícia da sua morte.

Quem herdou a oficina foi o filho mais velho. Fez também trabalhos para nós, onde às vezes pouco ganhava mas para os quais mostrava sempre disponibilidade.

Os tempos, porém, tinham mudado. Por todo o país os artesãos fechavam as portas. Ele não as fechou – mas a par do trabalho na oficina começou a dar aulas em Évora, numa escola profissional. Tinha menos tempo para os trabalhos avulsos, mas nunca nos recusou um pedido.

A sorte não queria nada com aquela família. E um dia disse-me que ia ser operado. Tinha supostamente uma doença grave e não sabia quanto tempo iria estar sem trabalhar.

Na última vez que falámos encontrava-se em casa, de baixa.

Precisando de um trabalho de serralharia, fui com o meu cunhado Rui Silva – coproprietário de um monte que temos há mais de 30 anos nos arredores de Estremoz – a uma oficina situada na zona industrial. O espaço, naturalmente, não tinha nada que ver com o outro: era um pavilhão moderno, incaracterístico. No interior, enorme, só trabalhava um homem. No escritório estava outro. Dirigimo-nos para lá, contámos ao que íamos, o homem dispôs-se logo a fazer o trabalho mas não se comprometeu com prazos.

Dissemos-lhe que tinha uma bela oficina, com muita maquinaria. E ele retorquiu:

  • O problema é que não há ninguém para trabalhar. Só tenho este rapaz, que tem outro emprego mas vem aqui dar-me uma ajuda.

Perante a nossa curiosidade, sentiu-se estimulado a continuar:

  • Eu não posso agora trabalhar… – e mostrou a mão direita inchada, explicando que foi o resultado da queda de um escadote. – Passaram por aqui dois rapazes a fazer estágios profissionais. Recebiam dinheiro por isso. Quando acabaram os estágios, quis ficar com eles, mas não quiseram seguir a profissão. Hoje estão noutro ramo, que dá menos trabalho. Depois a minha mulher, que é professora, falou-me de um colega lá da escola que gostaria de trabalhar aqui. Disse para lhe perguntar o que sabia fazer, mas o indivíduo ofendeu-se: O que sabia fazer? Pois não era ele professor de serralharia? Veio, esteve aqui um mês, mandei-o limar uma peça à esquadria e ficou uma lástima, com os cantos rombos. Talvez soubesse de tornos, a especialidade dele, mas fazer trabalhos não.

O homem continuou o seu fado:

  • Depois apareceu por aqui um nepalês. Eu até queria ajudar o rapaz. Mas ele também não sabia fazer nada. Eu tinha de lhe explicar tudo. Tive de o dispensar. E agora para aqui estou com este rapaz a ajudar-me…

Ao deixarmos a oficina, eu e o meu cunhado olhámos um para o outro. Não precisávamos de falar para sabermos o que cada um pensava. Tínhamos acabado de escutar uma história que já conhecíamos de cor e salteado – e que é o retrato do país.

Em toda a parte, falta gente para trabalhar. Em muitas profissões, os mais velhos morrem e não são substituídos. Os mais novos não querem empregos sem ‘estatuto’ e preferem estar sentados a uma secretária a preencher papéis. Os imigrantes são desqualificados. As escolas são mais voltadas para a teoria do que para a prática e os professores pouco percebem dos ofícios.

Quando me falam na ‘geração mais qualificada de sempre’, sorrio. Qualificada para quê? Para encher resmas de papelada que não serve para nada? Para fazer planos que depois não se concretizam? E já nem falo da emigração dos mais afoitos.

O sistema de ensino está formatado para distribuir canudos e não para formar as pessoas de que o país precisa. Nos hotéis, nos restaurantes, nas oficinas de carpintaria, de serralharia e de mecânica, nos trabalhos do campo, falta gente para trabalhar.

Este é um dos problemas mais graves que o país tem e do qual pouco se fala.