Apaixonado pela ficção, fosse a grande literatura de Tolstói ou o cinema de Hollywood, assinou doze longas-metragens. Uma delas, O Lugar do Morto (1984), marcou uma época e mudou o curso do cinema português. Também teve consequências a nível pessoal. «Passei a ser o tipo que tinha traído porque passei a ser um cinéfilo comercial», recordaria António-Pedro Vasconcelos décadas mais tarde. «O Lugar do Morto é talvez o mais pessoal dos meus filmes, o mais confessional, é quase obsceno. Só que teve um sucesso colossal, não tenho culpa. A partir daí todos os meus colegas acharam que eu tinha passado para o outro lado».
O sucesso decorria, em parte, da intenção – plenamente conseguida – de fazer um filme popular que não fosse popularucho, apelativo mas não condescendente, capaz de contar uma boa história. Um filme, em suma, que contrastava com a tendência mais intelectual e hermética que dominava em Portugal.
António Pedro Vasconcelos podia ser culto e sofisticado, mas não era elitista. Preocupava-se em fazer filmes para o português comum. «Sou contra a ideia de que um filme bom não pode ter público e que um filme que tem público é mau», dizia. Interessava-se, e muito, pelas reações das pessoas na sala: dizia que os risos e as exclamações dos espectadores na sala faziam parte da banda sonora.
Nascido em 1939 em Leiria, era filho de um juiz minhoto e de uma doméstica natural de Portalegre. Viveu em Coimbra durante a infância, tendo passado por Lisboa e por um colégio de jesuítas em Santo Tirso antes de se fixar na capital para estudar Direito. Não foi além do primeiro ano do curso, mas esse período foi ainda assim decisivo: inscreveu-se num cineclube universitário e começou a escrever crítica de cinema para a revista Imagem, onde conheceu a primeira mulher. «O que fiz é de loucos: com 20 anos saio de casa, vou viver com uma senhora e faço-lhe um filho. E não tinha onde cair morto!», contou em 2010 à revista Tabu, do SOL, numa entrevista concedida no seu monte alentejano.
Já pai, para pagar as contas, trabalhou uns meses no República, donde saiu por ser demasiado rebelde. Até que um dia abriu a caixa do correio e tinha lá uma carta da Gulbenkian a dizer que lhe fora atribuída uma bolsa para estudar em Paris.
«As pessoas hoje não fazem ideia do que era o choque de mudar de Lisboa para Paris nos anos 60», disse ao Expresso em 2018. «Lisboa era uma cidade cinzenta, em Paris, de repente, havia pessoas a beijarem-se na rua, mulheres nos cafés a fumar».
As condições em que vivia com a mulher e o filho não eram as ideais. «Vivíamos num sótão, fazíamos açorda quando havia um ovo, pão e azeite», recordou à Tabu. Chegou a trabalhar como veuilleur de nuit num hotel, «dava as chaves às pessoas e preparava os pequenos-almoços». Dormia pouco. Mas a paixão pelo cinema intensificou-se nesses dois anos. «Vi todos os filmes que havia, uma média de mil por ano. Metia-me na cinemateca às seis da tarde e só saía à meia-noite. E durante o dia ia ver os filmes mais recentes».
Ao Expresso, revelou: «Depois da estada em Paris, ainda nos anos 60, tentei fixar-me lá, fui a Itália tentar ser assistente do Rossellini e, depois, do Antonioni…»
Nenhuma dessas possibilidades se concretizou, mas quando regressou a Portugal já não havia qualquer dúvida sobre o que queria fazer.
Em 1972, novamente com apoio da Gulbenkian, roda Perdido por Cem…, que se estreia em 1973 e revela a influência tanto do neo-realismo italiano como da nouvelle vague francesa. O produtor é Paulo Branco, com quem anos depois chegará a andar à pancada por causa de uma questão de dinheiro – Maria José Nogueira Pinto contribuirá para sanar o conflito e virão a reconciliar-se, voltando até a trabalhar juntos.
Sem poder viver só do cinema, António-Pedro Vasconcelos manterá sempre outras ocupações. «Acabei sempre por fazer coisas como escrever, dar aulas, trabalhar na televisão, que me asseguram in dependência mas roubam tempo». Quando se dá o 25 de Abril, trabalha n’O Século. «A primeira coisa que fiz no suplemento Cinéfilo foi parar a edição, queria fazer uma edição já em liberdade, sem os jogos do gato e do rato com a censura», disse à Tabu.
No seu círculo de amigos do café Vavá, em Alvalade, havia a convicção de que o cinema português daria um enorme salto com a democracia. «Fizemos uma extrapolação: no dia em que o regime cair nós seremos os novos Rossellini. Depois nada corre como pensávamos. Acabámos por não corresponder às nossas próprias expectativas…». Olhando para trás, concluía em 2010: «Acho que o cinema que se fez depois do 25 de Abril, tirando alguns casos, é decepcionante. A liberdade não nos ajudou muito». E continuava: «Não me venham dizer que o Manoel de Oliveira ou outro qualquer são cineastas conhecidos no mundo inteiro. Não são. Se pegar no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer não há um único filme português. Há filmes croatas, sérvios, do Azerbaijão, das ilhas Fiji. Nem um português. O cinema português não conta. É tão conhecido como o cinema esquimó. Isto não é masoquismo, é um facto».
Em 1981, António-Pedro Vasconcelos realiza Oxalá, mais uma vez com Paulo Branco. E depois passa dois anos a angariar financiamento para Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, mesmo não sendo esse o cinema com que se identificava. «Até aí, tipos que hoje dizem que ele é um génio, arrasavam-no! De repente, eu e o Paulo Branco conseguimos que os Cahiers du Cinéma façam uma capa com ele. De repente, o país todo que o execrava, os meus colegas que achavam que ele era um velho reaccionário que não devia filmar, já não se atreviam a criticá-lo». Por essas e por outras não poupava os críticos. «Só há um gosto, o gosto do cinema português é o gosto do Expresso e do Público. E não é escrutinado por ninguém», denunciava. «Porque é que o crítico do Público tem melhor discernimento que a minha porteira? O cinema é uma arte popular, uma indústria do entretenimento, sempre assim foi. O Chaplin era popular, o Fellini também».
Além do cinema e dos jornais, o seu percurso passa também pela política. Nas presidenciais de 1986, dois anos depois do sucesso de O Lugar do Morto, desempenha, com Vasco Pulido Valente, um papel importante na campanha vencedora de Mário Soares.
Quantos aos seus filmes, debruçavam-se sobre realidades concretas. «Tento interpretar os problemas do meu tempo», disse à Tabu. Jaime (1999), que aborda o flagelo do trabalho infantil, por pouco não ficou a meio. «O Jaime foi chumbado e pensei que estava lixado e nunca mais ia filmar». Estava enganado. Depois disso realizou Os Imortais (2003), sobre um grupo de ex-combatentes da Guerra Colonial, Call Girl (2007), que teve 250 mil espectadores em sala, A Bela e o Paparazzo (2010), «sobre a loucura da imprensa cor-de-rosa e as vedetas das novelas», Os Gatos não têm vertigens (2013), Amor Impossível (2015) Parque Mayer (2018) e Km 224 (2021).
Além do cinema, teve uma presença forte nos meios de comunicação, como articulista e comentador. Assinou no SOL a coluna ‘Das duas, uma’ e, durante as fases de rodagem, o ‘Diário do realizador’, onde levantava o véu sobre o que se passava nos bastidores de um filme. Benfiquista ferrenho, defendeu as cores das águias no Trio d’Ataque, na SIC. «No futebol sou irracional. Acuso o árbitro, dou gritos, quando ganhamos agarro-me ao primeiro gajo que está ao lado», admitia.
Epicurista, apreciava uma boa refeição, um bom charuto, um bom carro, uma bebida tomada no terraço de um hotel.
«Sou profundamente depressivo mas por outro lado gosto imenso de viver. A minha mãe dizia ‘tu nasceste para rico’. Há duas coisas importantes na vida: resistir às tentações e não resistir às tentações. Tenho fases em que fico satisfeito por fazer loucuras e outras em que me sinto muito orgulhoso por resistir», resumia.
Vestia-se com elegância – o chapéu ‘bogartiano’, que levantava quando se cruzava com um amigo no Chiado ou na Lapa, era uma imagem de marca – e cultivava o cavalheirismo, mas também podia ser acutilante, em especial quando se envolvia em causas como manter a RTP ou a TAP na esfera pública.
Com os seus filmes, tentou – e conseguiu – fazer aquilo que se pede à ficção. «É a ficção que permite às sociedade interpretar as suas ansiedades, os seus receios. No fundo é o que nos salva. A grande ficção é purificadora, ajuda-nos a perceber o que são as boas e as más paixões, as boas e más causas. […] Os grandes mestres da minha vida foram os cineastas. Não podemos fazer filmes ingratos com a vida. Sou um bocado como o Woody Allen: ‘Este mundo é uma merda, mas ainda é o melhor sítio para comer um bife’».
António-Pedro Vasconcelos morreu na manhã de 6 de março, de pneumonia, «a poucos dias de completar 85 anos de uma vida maravilhosa», anunciou a família. Era casado com Teresa Schmidt e tinha três filhos.