Há 116 anos, no passado dia 1 de fevereiro, foram mortos a tiro no Terreiro do Paço o Rei D. Carlos e o filho D. Luís Filipe. Li praticamente tudo que de relevante se escreveu sobre o assunto, e surpreende-me que o enigma sobre o mandante do crime tenha persistido até hoje.
De facto, sabia-se quase tudo. Sabia-se que as armas usadas – uma carabina Winchester último modelo, de alta precisão, e uma pistola Browning – eram caríssimas, não estando à altura das fracas bolsas dos regicidas. E bastava isto para mostrar que havia outras pessoas por trás do atentado.
Mas sabia-se mais.
Sabia-se que a espingarda e a pistola tinham sido compradas num armeiro do Rossio, encomendadas por um monárquico dissidente – um tal visconde da Ribeira Brava.
E sabia-se que outro monárquico dissidente, chamado José de Alpoim – que tinha fugido para Espanha antes do atentado –, não se mostrou surpreendido quando lhe deram a notícia da morte do Rei. Ele estava, portanto, dentro do segredo.
Ora, sabendo-se tudo isto, ninguém durante 116 anos conseguiu identificar quem mandou matar o Rei D. Carlos – que seria necessariamente alguém muito próximo daqueles dois, no caso de não ser um deles.
Como explicar este silêncio?
O processo do regicídio foi aberto imediatamente após a tragédia, mas começou logo a deparar-se com sucessivos entraves. Entraves dos republicanos, que não queriam que se remexesse muito no assunto. Mas entraves, também, dos monárquicos. E porquê? Porque o Partido Republicano estava em estado de grande efervescência, e os monárquicos receavam que a eventual prisão de pessoas importantes ligadas àquele partido precipitasse uma revolução republicana.
A própria rainha D. Amélia – imagine-se! – terá feito pressões para que não se investigasse muito. E a razão era a mesma: perdera o marido, perdera o filho mais velho, e tinha agora pavor de perder o único filho que lhe restava, D. Manuel. E, para isso, o melhor era deixar os republicanos em paz e não escarafunchar mais no caso.
Neste ambiente, o último chefe do Governo da Monarquia, Teixeira de Sousa, mandou suspender as investigações – alegando não haver provas do envolvimento de mais pessoas no crime, além dos próprios regicidas mortos no local. Ora, como vimos, era óbvia a existência de outras pessoas por detrás deles.
Entretanto, veio a revolução de 5 de Outubro de 1910. O processo foi parar ao Ministério da Justiça, onde desapareceu misteriosamente. E uma cópia que D. Manuel II terá levado consigo para o exílio será roubada de sua casa. E assim se pôs uma pedra sobre o assunto.
Mas, sendo relativamente compreensível que o processo tenha sido abafado na época, como se percebe que o mistério não fosse mais tarde deslindado?
As pistas eram muitas.
O mandante do regicídio teria de ser, primeiro, uma figura com ligações políticas a Alpoim e Ribeira Brava. Depois, seria com certeza uma personalidade importante – visto que, se fosse uma figura de segunda linha, não haveria tanto empenho em escondê-la. E deveria ser um republicano – pois, caso fosse um monárquico, depois do 5 de Outubro o seu nome seria divulgado sem problemas.
Juntando as peças, as hipóteses não eram muitas. Mas ninguém ousou dar o passo decisivo de as investigar a fundo e apontar um suspeito. Tal como um juiz que prefere libertar 100 culpados a condenar um inocente, também os académicos que estudaram o assunto terão preferido não apontar um nome a correrem o risco de errar.
É certo não haver uma prova cabal que ligue diretamente o suspeito ao crime. Mas há inúmeros indícios que apontam inequivocamente numa direção. E, quando se investigam os passos e as ações desse suspeito nos sete meses que antecederam o regicídio, torna-se claro que foi ele quem deu a ordem para matar D. Carlos.
E não só este mas, provavelmente, toda a família real, com exceção de D. Amélia. Por que razão digo isto? Porque o príncipe herdeiro também foi morto e o irmão, D. Manuel, foi ferido. E a morte de D. Luís Filipe não foi acidental, não se deveu a uma bala perdida: foi um tiro cirúrgico dirigido à cabeça, disparado pela mesma carabina que alvejou o pai. Houve, portanto, a intenção clara de o matar. E D. Manuel diz que só não morreu porque na altura em que ouviu um disparo rodou instintivamente o corpo.
Se o Rei e os dois filhos tivessem morrido, liquidavam-se os Braganças – e abria-se uma crise dinástica que facilitaria uma revolução republicana. Mas, mesmo com a sobrevivência do infante, a revolução vitoriosa virá a acontecer dois anos e sete meses depois.