Na passada semana partilhei aqui alguns episódios narrados por Stuart Isacoff no livro de 2011 A Natural History of the Piano. Esta semana não resisto a contar-vos mais alguns. Se Art Tatum conseguia beber uma cerveja sem parar de tocar, como se tivesse três mãos, Josef Hofmann, nascido perto de Cracóvia em 1876, foi declarado por Sergei Rachmaninov «o maior pianista vivo» desde que estivesse «sóbrio e em forma».
Aos sete anos este músico polaco naturalizado americano já tinha uma técnica assombrosa que deixava os profissionais como Rubinstein, o fundador do Conservatório de S. Petersburgo, embasbacados. E aos onze estreava-se onde muitos profissionais sonham atuar – na Metropolitan Opera, em Nova Iorque.
Facto curioso, mesmo em adulto Hofmann tinha mãos pequenas, e usava um instrumento feito por medida. Ele próprio deu as instruções para o construir: além de pianista Hofmann era também inventor. Atribui-se-lhe a autoria do limpa-pára-brisas, aparentemente inspirado nos movimentos do metrónomo.
Hofmann acabou mesmo por tornar-se alcoólico, e no final os seus concertos já eram penosos de assistir para quem o tinha visto no auge das suas faculdades. Morreu em 1957 de pneumonia.
No ano seguinte, 1958, realizava-se em Moscovo a primeira edição do concurso Tchaikovsky. Estava-se em plena Guerra Fria entre as duas superpotências nucleares. E, por uma enorme coincidência, foi logo um jovem natural do Luisiana, Van Cliburn, que se destacou com a sua interpretação de Tchaikovsky.
Sviatoslav Richter, um verdadeiro monstro do piano – e um juiz exigentíssimo – proclamou-o «um génio», recorda Isacoff. «Emil Gilels avançou em lágrimas e beijou-o. O compositor Aram Khachaturain disse que ele era ‘melhor do que Rachmaninov’». Naturalmente, a vitória do americano constituía um embaraço, e o líder soviético, Nikita Kruschev, teve de dar o seu aval à atribuição do prémio.
Para mostrarem a excelência da sua escola, em 1960 os russos enviaram por sua vez um ‘embaixador’ numa tournée pela América, o próprio Richter (embora este gostasse era de tocar em pequenas salas para camponeses analfabetos na Sibéria).
Mais ao menos ao mesmo tempo que Richter tocava Beethoven em Nova Iorque, Byron Janis, nascido na Pensilvânia em 1928, atuava no Conservatório de Moscovo.
O público mostrava-se de má catadura. Estava bem fresco na memória o incidente com um avião de espionagem americano U-2 abatido em solo soviético. Tal como hoje os detratores de Ronaldo gritam por Messi, os russos gritaram por Cliburn. Mas Janis não se deixou perturbar. E, à medida que o concerto avançava, ele ia sentindo a hostilidade dissipar-se. Quando terminou, havia pessoas na plateia a chorar. «Quando entrei naquele palco eu era literalmente o inimigo. Agora viam-me apenas como um ser humano, como eles, que podia falar ao seu profundo espírito musical».
Li esta descrição e lembrei-me, imaginem, do final do Rocky IV. Com os olhos amassados, a escorrer sangue e suor pela face, Rocky discursa diante de um pavilhão repleto: «Vim para aqui esta noite e não sabia o que esperar. Achava que as pessoas me odiavam. Durante este combate vi muitas mudanças. […] Se eu posso mudar e se vocês podem mudar, toda a gente pode mudar». Estas palavras desencadeiam uma ovação ruidosa. No camarote presidencial, vemos alguém muito parecido com Gorbachov a aplaudir de pé.
Ocorre-me que tal como Rambo (também interpretado por Stallone) se inspirou em Rimbaud, talvez a cena final de Rocky se inspire no concerto de Byron Janis em Moscovo. A hostilidade, o desempenho formidável do americano, as lágrimas e a ovação de pé são em tudo semelhantes. E até o gesto do sósia de Gorbachov faz lembrar o aval de Kruschov. Ou se calhar, como diria um amigo que acha que tenho uma imaginação demasiado fértil, estou apenas ‘a surfar na maionese’…