A importância estratégica da ajuda humanitária a Gaza

Os EUA são a única potência com capacidade e meios para mediar, interferir e garantir propostas de solução neste conflito.

As ações humanitárias de apoio imediato ao sofrimento de pessoas e das populações em geral em virtude da guerra, conflitos ou atividades terroristas, exigem sempre determinação e comprometimento. Comprometimento funcional, mas também decorrente das muitas envolventes estratégicas e de ações diplomáticas.

Os beligerantes em primeiro plano, as principais potências regionais e outros Estados com interesses diretos na região e as próprias Organizações Internacionais (OI), condicionam geralmente esses apoios a uma estratégia de base geopolítica. É o caso de Israel, o Hamas, os Estados Unidos (EUA), o Egito e os Estados Árabes, a União Europeia (UE) e a própria ONU. A guerra na Faixa de Gaza, o sofrimento pungente dos seus habitantes em face da ofensiva do Exército Israelita e a não libertação dos reféns israelitas pelo Hamas, são um campo aberto para o drama vivido e para um apoio urgente e necessário da comunidade internacional, dos Estados e das OI.

A solução encontrada pelos EUA, com o apoio de vários Estados, OI e da UE, de apoiar através de um corredor marítimo humanitário de forma direta, a entrega de ajuda alimentar em Gaza, parece vir ao encontro das principais necessidades da população, mas também da comunidade internacional. Depois do apoio por terra (sempre muito atribulado pela lógica da guerra) e nas últimas semanas por ar, com o consentimento de Israel, os EUA e a Administração de Joe Biden têm procurado as soluções possíveis para minorar os efeitos trágicos desta guerra.

O Exército americano iniciou uma operação militar com substancial envergadura, empregando mais de 1000 efetivos para o acionamento de um porto marítimo temporário Joint Logistics Over the Shore (JLOTS) na Faixa de Gaza. Será assim construída uma plataforma de apoio com cerca de 500 metros sob o comando da 7ª Brigada de Transportes dos EUA. Deverá permitir a distribuição de mais de 2 milhões de refeições por dia e outros apoios críticos, como água, medicamentos e outros artigos considerados essenciais. Este tipo de estrutura militar tinha já sido utilizado em 2010 no Haiti. Contudo só deverá estar operacional no início de maio. Para dar corpo a esta operação militar de apoio, irá ser aberto um corredor marítimo humanitário específico centralizado em Chipre (a 370 Km de Gaza) apoiado por diversos países e organizações e pela UE.

O navio americano “General Frank S. Besson” de apoio logístico (LSV) transportará os primeiros equipamentos e estruturas para a construção do porto temporário. Também um pequeno navio espanhol carregado com 200 toneladas de ajuda alimentar da ONG “Open Arms” e fornecida pela World Central Kitchen (WCK) navega já do Chipre para a Faixa de Gaza, numa primeira tentativa de utilizar um corredor marítimo de ajuda humanitária.

Os EUA são a única potência com capacidade e meios para mediar, interferir e garantir propostas de solução neste conflito. A sua ação desde o início da guerra tem sido a de procurar consensos com os Estados Árabes e articular soluções para o não alastramento deste conflito a outras zonas do Médio Oriente. Em simultâneo tem procurado encontrar alternativas possíveis para o fim da guerra em Gaza, lançando inclusive as bases de discussão para um futuro Estado Palestiniano.

Esta operação de ajuda humanitária contribui necessariamente para essa estratégia. Tem agora três objetivos claros de estratégia política: o primeiro objetivo é garantir internamente, com o aproximar do período eleitoral com vista à reeleição de Joe Biden, que este possa contar com o apoio expressivo dos eleitores muçulmanos e os apoiantes da causa palestiniana nos EUA. O segundo objetivo: garantir o apoio da Arábia Saudita e dos outros Estados do Golfo, do Egito e da Jordânia, mantendo assim a liderança geopolítica deste espaço regional estratégico. Terceiro objetivo: manter o apoio a Israel e garantir a sua segurança regional face ao eixo Irão-Hezbollah-Hamas, procurando acordar soluções  conjuntas para o futuro da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, através de uma Autoridade Palestiniana renovada.

Para a União Europeia esta rota humanitária através de Chipre, é também um renascer diplomático na região, após os desaires na proposta da UE para um cessar-fogo e a prestação política “algo inconsequente” do representante da União para a Política Externa, Josep Borrel, em evidente contraste com a posição mais determinada em termos de consenso político da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

O Egito e os Estados Árabes ganham com este apoio humanitário marítimo. Passará a haver uma menor pressão junto à fronteira de Rafah com o Egito, situação que poderia colocar implicações sérias para a própria segurança interna egípcia, com eventuais deslocamentos de população e atividades terroristas na zona do Sinai e ainda possíveis litígios fronteiriços com Israel e até mesmo problemas com o Hamas.

Para Israel esta é uma operação humanitária que vem favorecer a sua liberdade de ação no campo militar. Evita que a ajuda humanitária possa ser diretamente canalizada para e pelo Hamas. Garante maior segurança militar no Teatro de Operações e retira parte da responsabilidade direta de Israel no apoio humanitário às populações. Pode até procurar abrir novos corredores a norte de Gaza de forma mais controlada, para garantir essa própria ajuda em conjunto com a ONU. Mantém o controlo total da segurança militar no território de Gaza, mesmo nesta operação de natureza humanitária por via marítima.

Para a ONU este corredor humanitário marítimo, tal como os lançamentos de ajuda por via aérea, são vistos de algum modo, como um fracassar da sua missão e da influência que poderia ter tido no apoio coordenado à população, em extrema dificuldade neste momento difícil da guerra. As suas considerações iniciais de âmbito marcadamente político e as acusações por parte de Israel e de vários outros Estados à Agência da ONU para a Assistência a Refugiados da Palestina (UNRWA sigla em inglês) vieram condicionar o apoio logístico que poderia canalizar para toda a população de Gaza. Deixou mesmo de ter qualquer papel de relevo no espaço da procura de soluções para um cessar-fogo humanitário e para a paz através da mediação do conflito.

Quanto ao Hamas, este tipo de soluções humanitárias de apoio aos palestinianos em Gaza, não vêm ajudar a sua estratégia militar e política, muito baseada na utilização da população como refém dos seus objetivos e das suas operações táticas de natureza militar.

Em conclusão esta operação de apoio humanitário por via marítima, centrada no apoio militar direto dos EUA e com base de partida no Chipre com destino à faixa de Gaza, é muito importante para a ajuda alimentar à desesperada população de Gaza, mas não deixa de assinalar uma componente de grande alcance geopolítico.