Com um universo e uma série de personagens que expandiram decisivamente o imaginário popular nas últimas quatro décadas, Akira Toriyama morreu aos 68 anos no primeiro dia do mês, sendo saudado como uma verdadeira lenda da Manga, o estilo de banda desenhada oriunda do Japão. Foi de tal ordem o impacto de Son Goku e companhia em todo o mundo, que milhões de miúdos numa era ainda analógica e dominada pelo tédio, sem terem bem consciência da exuberante combinação de elementos que garantiram o persistente fascínio da série Dragon Ball, começam hoje a dar-se conta de que esta significou, sobretudo para a infância a Ocidente, uma infiltração extravagante no quadro simbólico através do qual representamos as angústias de uma criança à medida que vai crescendo e se vê obrigada a largar a ingenuidade ao confrontar-se com um mundo marcado pelo conflito.
Toriyama morreu no dia 1 de março de um hematoma subdural agudo, uma condição em que o sangue se acumula entre o crânio e o cérebro. O Bird Studio, que o artista fundou no início da década de 1980, emitiu um comunicado em que, não só dava conta da causa da morte, como lamentava que os problemas de saúde tenham impedido Toriyama de levar até ao fim uma série de projetos criativos a que se agarra nos últimos anos de vida e que o mantinham focado e cheio de entusiasmo. Além de Dragon Ball, este criador tinha já conseguido superar as fronteiras da cultura japonesa com Dr. Slump, e mais tarde voltaria a fazê-lo com a série Sand Land, tendo o seu universo sido uma influência constante para uma série de outros artistas manga e não só. E talvez a sua desenvoltura extraordinária ao dar à luz um conjunto de realidades alternativas com uma forte componente de fantasia se ligue ao facto de ser um assumido hikikomori, palavra japonesa que designa uma série de pessoas que preferem lidar com o mundo à distância, preservando algum nível de reclusão. Basta lembrar que, depois da II Guerra Mundial, e da humilhação e devastação do país, os japoneses viram-se também aprisionados pelo peso da tradição e de uma cultura muito reticente na hora de assumir e confrontar os seus traumas. Assim, foi através desses universos paralelos em que tantos artistas se serviram da margem onírica para confrontar os fantasmas do passado e arrancar a geração do pós-guerra a esse estado de anedonia.
O contributo de Toriyama para que esse regime de auscultação íntima de faça estendendo e forçando os limites do imaginário foi crucial sendo ainda bastante raro que uma criação manga ou um filme ou série anime alcance esse apelo transversal ao ponto de ganhar expressão entre os principais meios de comunicação ocidentais. Comparável ao êxito de Dragon Ball, só as séries Pokémon e Naruto. Mas aquele precedeu-as e abriu caminho para o enorme sucesso destas duas. Nas origens dessa mitologia que veria a ramificar-se e tornar-se cada vez mais complexa, estava um rapaz alienígena, Son Goku, que vem parar à terra e que, além de uma força sobre-humana, tem uma cauda, e quando se vê exposto à lua cheia se transforma num imenso macaco com um desejo de devastação incontrolável. O rapaz é adotado por um velhote, a quem chama avô, e a série começa depois da sua morte, com o miúdo a virar-se sozinho e determinado em trazê-lo de volta à vida. Uma das suas mais preciosas possessões é precisamente uma das sete bolas mágicas, que lhe foi dada pelo avô, e, conhecendo a lenda, espera reuni-las para que o Dragão lhe conceda esse desejo. Nesta demanda, irá juntar-se a uma adolescente de cabelo azul chamada Bulma, uma genial inventora de todo o tipo de engenhocas num mundo em que a tecnologia e a magia se confundem, e que, qual Dr. Jekyll e Mr Hyde, tem também ela um traço particular e que tende a gerar o caos, uma vez que, sempre que espirra, se vê transformada numa loira endiabrada que quer resolver tudo aos tiros. Juntos os dois vão partir em mil aventuras no esforço de colecionar as bolas espalhadas pelos quatro cantos do mundo para convocar o dragão Shenron. Como fica claro por estas duas personagens, todo este universo alude sempre a esse outro lado sombrio na nossa natureza, a essa dificuldade em lidar com certos traumas e que emerge em momentos críticos e vira sobre a cabeça qualquer equilíbrio ou harmonia que tenhamos construído. No fundo, Toriyama foi mais outro desses artistas japoneses que desenvolveram um universo bastante rico e cheio de camadas no sentido de estabelecer uma ponte para o subconsciente. O universo de Dragon Ball combina esse registo de uma história de aventuras e exploração do desconhecido sempre pontuadas por zaragatas e cenas de porrada vagamente inspiradas nos filmes de artes marciais de kung-fu, mas tudo isto vibra face a um quadro geral de ficção científica emulsionada num ambiente de fantasia que está sempre a miscigenar os géneros, servindo-se da tecnologia e da fronteira espacial como um horizonte que não cessa de oferecer novas e encantadoras ou temíveis surpresas.
A força deste regime de criação é precisamente esse lado quase desavergonhado e que não receia nutrir-se do absurdo para espicaçar os nervos. É um quadro de ficção descontrolado e que se joga muito para lá do quadro geral de suspensão da descrença, num território em que o exagero é o próprio instrumento de penetração, correspondendo assim às divagações de uma geração cada vez mais barricada nos seus quartos, um bando de introvertidos que têm de usar a imaginação como um estômago para processar e digerir as agressões de um mundo em completo desarranjo. No universo do Dragon Ball tudo balança entre a caricatura ou a paródia, as personagens espremem até ao limite o quadro das fábulas, há uma espécie de histeria na forma como a trama se alimenta de todos os níveis do fantástico, num efeito cómico, muitas vezes zombeteiro, mas que também abre margem para verdadeiros conflitos e a expressão sincera de emoções e angústias. É uma das séries que melhor exprime a noção de um universo dinâmico e em expansão, e consegue ser muito mais audaciosa na forma como mistura elementos místicos e do folclore japonês, propondo um regime de superação que implica um nível espantoso de auto-referencialidade e um exercício meta-textual em que não há limites para o seu quadro de irrisão e gozo. E neste aspeto, Toriyama chegava a ser impiedoso, pois ao contrário de outros artistas manga, sempre rejeitou ter uma postura moralista, ou transmitir mensagens didáticas. Nas poucas entrevistas que deu, sempre deixou claro que só lhe interessava cativas e entreter, e que cabia a cada leitor ou elemento da audiência servir-se das obras para os seus próprios fins e explorações.