As bolhas e o país real

Não há bolhas: há amigos, colegas de trabalho, escolas, benfiquistas, sportinguistas, vizinhos ou contas nas redes sociais. Nada de novo. Se os eleitores do Chega representam o país real, os outros milhões representam o quê? Nárnia?

Está na moda falar em bolhas. A bolha mediática, a bolha urbana, a bolha dos betinhos, a bolha do X, a bolha partidária, a bolha dos jovens e a bolha dos ricos. E depois há o país real. As bolhas vivem num mundo só delas, com as suas teorias, crenças, hábitos e linguagem. Não têm noção do mundo o que as faz tacanhas e pouco informadas.

O problema desta teoria das bolhas é que sobra pouco de país real. Parece que o país real é um conceito que ninguém conhece, uma vez, que segundo esta teoria, é qualquer coisa que existe para lá das bolhas. Só se consegue conhecer o país real fazendo uma sopa de bolhas: tudo para dentro de um tacho e convidar especialistas que vivem em bolhas de especialistas para mexer a sopa. Falta-nos, no entanto, especialistas em bolhas. Assim como especialistas do país real. Sociólogos em país real, por exemplo. 

Ao que tudo indica, é nos cafés, nas estações de serviço e na fila dos hipermercados que está o dito país real. O problema é que aqui só conseguimos encontrar membros das várias bolhas, nada do país real. Uma vez que cada uma das pessoas da fila do supermercado vive na sua bolha e só sai de lá para fazer compras e beber café. Coisas que todas as pessoas de todas as bolhas fazem. 

Quando os resultados eleitorais revelaram ao país das bolhas que 1.1 milhão de habitantes do país votou no Chega, as bolhas entraram em crise identitária: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Temos de sair das bolhas, não conhecemos o país, existem pessoas para lá das nossas bolhas, disseram as bolhas umas às outras. Como se os votantes do Chega fossem os legítimos representantes do país real. Os puros e esquecidos. Olha, perderam a paciência e votaram na extrema- -direita, temos de os acudir ou haverá um banho de sangue. E estamos nisto: cerca de 6 milhões de portugueses consternados com o voto de um milhão como se a responsabilidade fosse deles. Ou seja, parece que um milhão de portugueses vive no país real e todos os outros habitam em Marte. 

A verdade é que não há bolhas: há amigos, colegas de trabalho, escolas, benfiquistas, sportinguistas, vizinhos ou contas nas redes sociais. Nada de novo. Se o Chega representa o país real, os outros milhões representam o quê? Nárnia? Os votantes do PS e do PSD, que perfazem dois terços dos votos, não são extraterrestres que, se conhecessem o país real, a problemática dos imigrantes e dos ciganos, seguramente votavam no Chega, mas como vivem em bolhas, nunca passaram pela Almirante Reis, nem têm os filhos em escolas públicas, não entendem a dinâmica e as dificuldades do mundo real. Nada mais errado. Os eleitores dos maiores partidos são o país real assim como os eleitores do BE e do Chega, também são (apesar de serem menos). Estamos todos na fila dos supermercados e a pôr gasolina, chateados com os impostos e revoltados com a falta de médicos. As pessoas votaram no Chega por razões que só elas próprias conhecem, mas isso não lhes concede o estatuto de eleitores especiais. Este alarme social de que é preciso “sair da bolha” para perceber o que motivou o voto destes eleitores é só inútil. E tem pouco interesse. É preciso sair da bolha dos que acreditam em bolhas. O país real somos todos. Temos pena.