Evitamos pensar na morte. Muitos assustam-se com ela, outros veem-na de uma forma mais natural. “Nem o sol nem a morte podem ser encarados de frente”, escreveu o pensador francês do século XVII La Rochefoucauld.
Mas se por um instante imaginarmos a morte de alguém próximo, há uma série de perguntas que se começam a colocar: a que cheira a morte? Depois de um homicídio, de uma morte em casa ou um suicídio, quem fica responsável pela limpeza do local? A quem recorrer para eliminar os resíduos biológicos de um corpo em decomposição ou o sangue resultante de um suicídio ou homicídio? De que forma conseguimos apagar a memória do local? Remover o cheiro? Ter a certeza que todos os vestígios são eliminados?
A maior parte das pessoas acredita que este é um papel que cabe às autoridades, mas não podia estar mais enganada. Depois da investigação, a chave é colocada na mão dos familiares, muitas vezes em situações de trauma, que não sabem bem o que fazer.
A única empresa certificada na Europa
“Há 16 anos que o nosso trabalho é apagar a memória daquele local e momento”, começa por explicar ao i Pedro Badoni, fundador da empresa DeathClean, certificada na limpeza e desinfeção de locais com resíduos de risco biológico. Ou seja, tudo aquilo que pode transmitir, através de microrganismos, algum tipo de infeção ou doença. O empresário tinha apenas 28 quando criou a empresa que está por detrás dos outdoors que de há uns anos para cá vêm despertando o interesse e a curiosidade daqueles que passam por algumas estradas portuguesas – “Limpamos locais de crime” -, como dos vídeos que circulam no TikTok e que enojam muitos outros, pelas imagens bastante chocantes dos locais que a empresa limpa.
Tendo uma carreira ligada à Proteção Civil, em 2008 Pedro Badoni percebeu que “havia um nicho por explorar”. “O clique deu-se quando assisti ao filme Cleaner, no qual Samuel L. Jackson tem como profissão a limpeza de cenas de crime, nos EUA. Descontraidamente, a ver o filme pensei: ‘Será que isto existe em Portugal?’”, recorda. Como estava ligado à Proteção Civil, tinha algumas bases, “mas eram apenas bases”. Depois de uma grande pesquisa e de perceber que efetivamente este tipo de serviços não existiam no país, começou a montar um projeto que foi “partir pedra” sem saber o resultado final. “Aqui o crime é reduzido comparativamente aos EUA. Temos ausência de pessoas que deem formação, tinha poucos recursos financeiros… Tive de explorar, trabalhar arduamente. Consultei a lei portuguesa, a europeia e percebi o que poderia fazer”.
A DeathClean existe, por isso, como serviço especializado. “Somos a única empresa certificada na Europa”, sublinha o seu fundador. “Temos uma formação na área, todos vão fazer um exame de admissão e todos os anos tenho que provar que estou apto não só a passar formação, como a empresa está apta a poder desempenhar esta atividade. Se a fiscalização em Portugal não funciona, se o povo português desconhece que existe alguém que pode ajudar e que existem regras que são obrigatórias, é normal que qualquer pessoa o faça”, lamenta. E, quando se diz “qualquer empresa”, de acordo com o empresário, aqui entram também as empresas “convencionais domésticas”. “Fazem bem? Não! Como é que alguém pode fazer um trabalho bem feito se não tem os instrumentos e os produtos necessários.? Se fosse fácil, nós em 2008 tínhamos feito as coisas de outra maneira. Não me preocupava com certificações, com formações. Ainda hoje tinha o trabalho mais facilitado… Pegava num balde e numa esfregona e limpava”, alerta. “E ninguém fiscaliza isso! As autoridades não têm sequer formação nesta área. São totalmente desconhecedores. Para eles é: houve uma morte, a porta foi fechada, a chave devolvida e pronto. Quem limpou, onde está o resíduo, não interessa. Não há qualquer responsabilidade”, reforça. Além disso, acrescenta, o que acontece com frequência é serem familiares que o fazem por desconhecimento, colocando em perigo a saúde e ganhando traumas. “Repare que o sangue, quando está fora do nosso corpo, é um resíduo infeccioso. Mas aqui é essencialmente o trauma. Limpar restos mortais de um familiar tem um trauma associado. As pessoas não pensam nisso”, lamenta.
Este é, por isso, um trabalho exigente, tanto a nível de horário, como fisicamente e emocionalmente. “Nós temos técnicos formados na área e recrutá-los é mesmo complicado. E para os manter mais ainda”, admite o empresário. “Ninguém pode dizer que nasceu para fazer um trabalho destes… As pessoas chegam aqui a acharem que são capazes, mas quando vão para o terreno o cenário pode mudar de figura”, explica. “Estamos com um fato, com uma máscara, com luvas… No inverno é suportável, mas e quando chega o verão? Se cá fora estão 35 graus, com o fato estão mais 10! Não nos podemos hidratar como num trabalho normal – pegar numa garrafa de água e beber. Tem de se fazê-lo numa zona que não esteja contaminada, tirar o fato, etc. Estamos sob stress térmico, físico”, detalha. Por todas estas razões, muitos vão embora. Além disso, a empresa é feita com muitas regras, porque nada pode falhar. Não pode falhar na parte da segurança do técnico, nem no trabalho para o cliente. “O cliente dá-nos a chave, nós entramos e ficamos na posse daquela casa. Não pode ser qualquer pessoa a trabalhar aqui”, garante. Uma vez a equipa encontrou 12 mil euros numa casa de um cliente. O corpo estava já em decomposição. Ninguém sabia do dinheiro. Os técnicos colocaram-no num envelope e entregaram ao cliente que os havia contratado.
Homicídios, Suicídios, Decomposições e Acumulações Mas afinal onde é que a empresa opera?
“Nós intervimos em locais de risco biológico. Por norma, as pessoas associam-no à covid-19 e têm razão, mas não é apenas isso”, explica Pedro Badoni. “Isto existe desde a Idade Média. Nós marcamos muito a nossa empresa na parte do crime e trauma, que é realmente aquilo que é mais fácil para atrair a atenção e explicar aquilo que é o risco biológico”, admite. “Homicídios na parte do crime; suicídios (na parte do trauma) e decomposições. Tirando isso, temos a acumulação compulsiva, que é algo muito normal. Casas de pessoas que acumulam e não deitam nada fora, nem lixo. Têm fezes fora da sanita, os frigoríficos com coisas podres… Chegam aqui à empresa um a dois pedidos por semana. É mesmo muito habitual”, revela, lamentando que há vezes onde não conseguem intervir porque a pessoa em causa não quer. “É o familiar que nos contacta, mas as pessoas não nos permitem. São trabalhos com alguma volumetria. São sempre os mais dispendiosos. Por norma isto advém de situações depressivas ou de fobia social”, esclarece. Tirando isso, a empresa tem também trabalhos de remoção de dejetos de pombo e de rato e situações de água de esgoto, que também são perigosas para a saúde. “O saneamento sair da sanita e invadir o espaço com dejetos humanos também é muito perigoso e muito desvalorizado”, aponta. “Temos também a parte de desinfeções gerais que podem acontecer num hospital, no controlo de algum surto microbiológico, como a covid-19”, continua. “Não é muito usual mas também já limpámos um comboio depois de um atropelamento e viaturas onde cometeram suicídio, contaminadas por seringas, material cortante… Terrenos onde há toxicodependentes na zona”, acrescenta.
Segundo o empresário, os pedidos são “um bocado sazonais”. Situações de decomposição biológica estão muito associadas ao calor. “Quando começa a aquecer, nós começamos a ter mais trabalho na parte da morte. Casos de homicídio e suicídio acontecem a qualquer altura do ano. Lembre-se que nos suicídios, mesmo que seja por enforcamento, pode-se dar o caso do corpo só ser descoberto dias depois, por isso entra em decomposição”, afirma. Os casos mais usuais são de pessoas que, ou se cortam e há sangue por todo o lado, ou tiram a própria vida com arma de fogo. “Estas são situações mais complicadas. O sangue salpica por todo o lado”, revela. Apesar de não terem uma taxa alta de homicídios, o primeiro trabalho deste ano da DeathClean – logo no dia 1 de janeiro – foi um homicídio no Montijo. Uma discussão durante a passagem de ano.
As situações mais complicadas
Interrogado sobre as situações mais “fora da caixa” e mais complicadas em que intervieram, Pedro Badoni faz questão de afirmar que conseguiram “resolver todas”. “Já limpámos duas aeronaves. Uma delas era de uma escola de formação. Um aluno estava a fazer um voo de instrução sozinho e caiu. Retiraram o corpo, mas o gabinete de investigação e prevenção tem de investigar. Imagine que pega numa garrafa e a amachuca… Está tudo lá. Fragmentos da pessoa, sangue, etc. Nós temos de pegar naquilo, separar e, se tivermos de cortar, temos de colocar as setas para que eles saibam que não foi da queda… À medida que vamos separando as peças, vamos limpando. Posso dizer que os motores, geralmente, têm massa encefálica. Porque os aviões geralmente caem a pique.. É um trabalho de muita precisão. Pegamos no amontoado de fibra e chapa, separamos e limpamos. Depois disso as autoridades podem investigar. É um trabalho fora da caixa”, lembra.
O fundador da DeathClean lembra também o momento em que a equipa teve de trabalhar debaixo de um comboio, depois de um suicídio. “Muito complicado, muito sujo, cheio de óleo e com os bocados da pessoa”, detalha. “Além disso, já tivemos um caso no elevador”, continua – a queda de um elevador na sede do BPI, em Lisboa, em 2019, que resultou na morte de um técnico. A equipa teve de tirar a cabine do fosso para fazer a desinfeção. “Também já tivemos suicídios de pessoas no elevador. Abrem a porta no último andar e atiram-se para a caixa”, afirma Pedro Badoni.
Relativamente aos acumuladores, segundo o empresário, em cada bairro há mais do que uma pessoa acumuladora. Acreditando que este é um problema de já vários anos. “Não posso dizer que os casos têm vindo a crescer, mas o conhecimento sobre eles sim”, garante. Situações idênticas às que vemos no canal TLC. “Em Setúbal tivemos uma intervenção o ano passado em que tirámos 60 toneladas de lixo de um apartamento. A senhora tinha lixo em casa que nem nos permitia abrir bem a porta da rua. Acumulou, acumulou e morava no carro. Foi claramente a força dos familiares que a ajudou. Felizmente, a senhora aceitou a ajuda”, lembra, revelando que o trabalho teve de ser feito por fases, já que cada vez que os técnicos mexiam nos detritos, entravam baratas para o prédio. “Foi mesmo um caso extremo de acumulação. Eu tirei uma foto sentado em cima do lixo e tocava no teto”, conta.
O cheiro da morte
Ao que é que cheira a morte? “É um cheiro muito característico, um cheiro que é muito proveniente da putrescina e da cadaverina. Mas com o tempo habituamo-nos. É como tudo”, descreve o fundador da empresa, reforçando que os técnicos têm sempre proteção respiratória. “A decomposição de um corpo liberta odores. É proveniente de uma zona contaminada e, apesar de ser algo proveniente do corpo, tem sempre uma base química. São compostos orgânicos voláteis. Está estudado que em diversas fases da decomposição de um corpo, se libertam diferentes compostos. Esses compostos são prejudiciais para a nossa saúde, nomeadamente para a parte respiratória”, explica.
No final do ano passado, a empresa tratou de um caso no Algarve de um cidadão estrangeiro que faleceu e os familiares estiveram no espaço a remover tudo até a DeathClean intervir. “Claro que não achámos bem que essas pessoas estivessem a remover coisas de um espaço contaminado. O que é certo é que os senhores regressaram ao seu país de origem – estavam na casa dos 70 anos – e, quando voltaram, um deles vinha com uma infeção pulmonar apanhada no local da morte. Porquê? O mau odor dá uma informação ao nosso corpo: afasta-te. É algo que não está bom. O senhor esteve lá durante algum tempo e, já com alguma idade, tinha as suas defesas mais em baixo. Foi o suficiente. É o mesmo que acontece num aterro. São libertados gases. A máscara é obrigatória e há umas em que se sente o odor, outras não… Desde que proteja!”, alerta.
Evitar o trauma
Embora tentem sempre manter distanciamento em relação às histórias, os profissionais da DeathClean acabam por ficar conhecê-las. O empresário já interveio várias vezes dando conselhos a algumas famílias, acreditando ter evitado traumas maiores. “Eu chego a estar com familiares que se emocionam. Tivemos uma situação no Alto Alentejo onde houve um suicídio com arma de fogo (caçadeira). Um filho com 21 anos. O jovem suicidou-se porque não aguentou oito anos sem o irmão que tinha falecido. Aquela família perdeu dois filhos. Um com 21 anos que teve um acidente e, passados 8 anos, outro com a mesma idade. Imagine como está emocionalmente aquela família. É algo que nós não conseguimos ter noção”, conta. Pedro foi ao local para fazer a avaliação, já eram por volta das 20h30. “Na divisão conexa estava a mãe, completamente em pânico… Acontece muitas vezes estarmos a fazer o nosso trabalho e os familiares estarem na casa ao lado. Ouvimos os gritos, o luto. Eu cheguei ao local, tinha sido na cozinha. A senhora disse-me que se precisasse de água para dizer. Eu pensei: ‘Água? Será que eles pensam que eu vou começar a limpar?’. Eu ia apenas fazer a avaliação… No dia seguinte estaria lá a equipa. As pessoas não conseguem perceber a dificuldade das limpezas. Um tiro com caçadeira, imagina?”, interroga, sublinhando, mais uma vez, que as pessoas chegam ao sítios, veem uma poça de sangue, mas não veem a massa encefálica espalhada… “Eu já sei. Chego, observo e percebo”, descreve.
Quando estava a fazer a avaliação, ouviu um senhor chegar com mais dois familiares que disseram que conseguiram água quente e que iam limpar. “Eu ouvi aquilo e pensei: ‘Vou esquecer a parte do negócio. Aqui, é a parte da consciência!’. Claramente que aquela família, se o fizesse, ia ter problemas psicológicos. O senhor entrou lá a dizer que eu estava dispensado. Tive mesmo de intervir e falar com a senhora que estava a tremer. ‘Os senhores vão limpar, mas isto não vai ficar bem limpo. Repararam que há massa encefálica ali na porta? No chão há fragmentos de osso… Na zona onde o corpo esteve há uma infiltração’, detalhei. Houve um silêncio total. E um dos senhores disse-me que a mãe não sairia dali enquanto aquilo não estivesse limpo. Disse-lhes que ela precisava de acompanhamento psicológico, porque tinha acabado de perder um filho e que estas coisas não se resolvem dessa forma. Felizmente ouviram-me e disseram-me para fazer o meu trabalho”. A equipa esteve na casa três dias. Atrás da máquina da loiça que estava junto à poça de sangue, havia uma outra poça. A máquina teve de ser afastada. O rodapé de cimento absorveu todo o sangue e começou a sangrar. E claro que tudo o que lá estava na cozinha teve de ser verificado ao pormenor. “Isto nunca ia acontecer se eles limpassem. Fica tudo entranhado. Ao fim dos dias, o odor fica lá. Temos de sensibilizar as pessoas para isto”, sublinha. De acordo com o fundador, a empresa tem mais de 20 produtos para tirar o odor e dois ou três para o sangue. Tirar o sangue é uma parte muito dura. “Temos de limpar, fazer o check up, limpar, fazer o check up. Ao final de muitas horas os nossos olhos estão cansados, por isso, temos de ter muita atenção e paciência”, admite. Já para eliminar o odor, a equipa tem de aplicar técnicas e produtos com uma certa sequência. “Nós retiramos o odor de uma casa em dois ou três dias. Todos os produtos que utilizamos vêm de fora. O mercado português não está preparado para estas atividades. Há um ou dois produtos que compramos na Europa, o resto vem de barco dos EUA, porque nem pode ser transportado nos aviões”, conta.
Recentemente, a DeathClean foi chamada a intervir num caso de uma morte num hotel no Saldanha (Lisboa). O corpo do hóspede que faleceu (morava no hotel) só foi encontrado dias depois. “Vai ser necessário retirar o soalho, porque estava a entranhar-se tudo. Se não tratássemos das coisas, os hóspedes que estão em baixo iam começar a ver a infiltração. Está tudo com fluido corporal. Tiveram sorte que o chão é todo em cimento, se fosse madeira, ia escorrer para baixo”, garantiu Pedro Badoni, mostrando fotografias do local.
No que toca às pessoas que empregam, segundo o fundador da empresa, não se exige que tenham qualquer tipo de base ou formação académica. “Nós queremos é pessoas que tenham capacidade para lidar com estas situações. Claro que a pessoa tem de ter atenção ao detalhe – porque o nosso trabalho é muito minucioso –, e que se desenrasque bem com ferramentas. Tendo isso como base, tudo o resto vem da formação que é depois passada”, explica. Interrogado sobre a existência de acompanhamento psicológico para os técnicos da DeathClean, Pedro Badoni revela que não há. “Se eu tiver de colocar um psicólogo aqui, é porque as pessoas não estão capazes. Se existe desconforto, não podem trabalhar aqui. O desconforto é fácil de identificar. Mas, por norma, as pessoas saem porque percebem que não é trabalho para eles, nunca chega a situações de trauma”, garante. Outro ponto importante: “Este trabalho também é complicado do ponto de vista familiar. Nós trabalhamos à chamada, 24 horas por dia. Às vezes temos de ativar técnicos que estão no seu pleno descanso. É inevitável quando são situações de urgência. Depois, nos serviços, há uma hora para entrar, mas não para sair. Há um conjunto de tarefas que se têm de fazer, mas às vezes demora mais tempo”, acrescenta. Para a Deathclean não há trabalhos impossíveis. “Estamos preparados para tudo. A área de risco biológico é um tabu. A covid-19 abriu uma caixa de pandora”, remata.