Não têm ‘pinta’ de Sherlock Holmes, mas lançaram-se na empreitada, juntamente com Miguel Ribeiro Ferreira e José Germano de Sousa, de serem os chefes de equipas de investigadores, numa espécie de CSI à portuguesa. Os fãs da série norte-americana lembram-se certamente que muitos dos casos eram deslindados nos laboratórios forenses, embora no caso em apreço os ‘cientistas’ tivessem o estatuto de polícias forenses.
Se em Portugal não há muito esta tradição de se fazer uma empresa que englobe várias especialidades – embora haja casos como a Egas Moniz School of Health and Science, que trabalha para o Estado e para particulares, ver págs. 8-9 – já no Reino Unido ou nos EUA, por exemplo, é algo comum. Basicamente, Rui Mergulhão, mestre de Ciências e Emoções, com pós graduação em Ciências Forenses, Profiling e Comportamento Desviante, e Paulo Vieira Pinto, ex-GNR e mestre em Ciências Forenses, entenderam que “havia uma necessidade premente de tomar conta daquilo que eram as ciências forenses e a área das perícias forenses”, como diz Rui Mergulhão ao i. Juntamente com um sócio, Rui convenceu Paulo Pinto a deixar a GNR, onde esteve 25 anos, e a embarcar no projeto.
A ideia, que parece um pouco insólita para os padrões portugueses, é explicada de uma forma simples: “Pretendemos, basicamente, ser uma contraprova àquilo que possa ser a área pericial. Queremos trazer – nas várias disciplinas, quer seja na sinistralidade rodoviária, na grafologia, na toxicologia, no ADN, na genética, na grafotécnica… num leque enorme daquilo que as ciências aportam – a possibilidade de qualquer pessoa apresentar uma contraprova sobre os factos. E nesse princípio de apresentar uma contraprova, fomos coletar uma equipa de peritos nas mais diversas áreas que nos permitem, hoje, ter uma resposta multidisciplinar”.
Deixemos a linguagem técnica e vamos então a exemplos. Alguém tem um acidente rodoviário e a PSP ou GNR fazem um relatório para que depois as seguradoras decidam a quem assiste a razão. Mas quem não concorda com a decisão – e se envolver vítimas mortais o Ministério Público entra em ação – até aqui pouco podia fazer, a não ser contratar advogados. “Nós temos um gabinete, por exemplo, na área da sinistralidade rodoviária, próprio e forte, que consegue fazer toda a dinâmica do sinistro e consegue trazer, ao fim e ao cabo, a verdade dos factos sobre o que aconteceu. A verdade segundo o que a ciência nos mostra. Não trazemos aquilo que a Foren nos mostra, mas sim o que a ciência nos traz. Assentámos a Foren numa estrutura que tem o Paulo enquanto diretor de operações, temos um diretor de laboratório técnico-científico que trata de toda a parte da análise científica e todas as pessoas que estão connosco, neste momento, são referências nas áreas que aportamos. Falando da sinistralidade rodoviária em concreto, temos softwares próprios, engenheiros que fazem todas as dinâmicas desde as velocidades, aos embates, às travagens, às deformações de automóveis… A tudo o que possa ser analisado”, acrescenta Rui Mergulhão.
Escritórios de advogados, seguradoras e perícias
Tendo como principais alvos escritórios de advogados e seguradoras, a Foren não faz perícias, como explica Paulo Pinto: “Podemos ser consultores técnicos ou especializados. O Código do Processo Penal prevê que as partes possam fazer-se acompanhar de técnicos especializados. A nossa prova vale como uma prova documental. Não é uma perícia porque não foi ordenada pela autoridade judiciária competente, juiz ou MP, mas é exatamente aqui que ela está limitada. Mas, do ponto de vista metodológico, ela respeita e cumpre os mesmos requisitos que uma perícia. A diferença está em quem a ordena. A qualidade e competência científicas são reconhecidas e a autoridade competente valida-as. Se fôssemos envolvidos num caso como o da Sara Carreira, o que a Foren iria aportar seria uma análise distanciada, com base em cálculos que estão escudados na ciência, e com o limite da ciência, sobre tudo o que poderá ter acontecido. Com os factos que nos são trazidos, tentamos reconstituir aquilo que aconteceu. Seja numa dinâmica de ciência rodoviária, seja em qualquer outra área. Apresentamos, basicamente, dois documentos: fazemos uma reconstrução, em vídeo, do que terá acontecido e fazemos um relatório com vários capítulos em que analisamos a dinâmica pré-colisão, a dinâmica durante a colisão e pós-colisão. Além disso, conseguimos determinar, por exemplo, velocidades e transferências de energias e as consequências que estão descritas na literatura daquilo que pode ter concorrido para aquela produção. Recentemente, estudámos um caso de uma instituição que está a cobrir um estudo mediático. Envolveu a morte de três pessoas e pediram-nos para saber se era possível a história contada pelo condutor ser verosímil. Não era verosímil que um veículo tivesse transitado em contramão e tivesse levado o condutor sobrevivente a uma manobra absolutamente irreal. Pela deformação dos veículos, dos materiais, os ângulos de colisão e a posição final dos veículos… conseguimos determinar aquilo que poderá ter acontecido. A Física é demonstrada, chamemos-lhe nós perícia ou exame. A metodologia é exatamente a mesma”.
Além das vidas humanas pode estar em jogo muito dinheiro, pois as indemnizações em muitos casos ultrapassam largos milhares de euros. “Há um bom exemplo. A companhia, antes de nos contratar, tinha feito uma previsão muito substancial – cerca de meio milhão de euros – de uma compensação porque estavam em crer que, de facto, a responsabilidade poderia ser deles. A GNR e a PSP fazem exames, não fazem perícias. Apesar de terem alguma formação na área da Física dos acidentes rodoviários, não têm o software. As forças de segurança, no geral, têm formação na dinâmica de como o acidente ocorre. Não têm os softwares nem a formação de base científica escudada em Matemática. Não é expectável que um militar ou um agente tenha formação em Física ou em Engenharia para fazer os cálculos. Como resultado das nossas perícias, tudo indica que a companhia que nos contratou não terá de pagar indemnizações, pois a razão está do seu lado”, acrescenta Rui Mergulhão.
O que esta empresa faz, há muito que é feito no estrangeiro, como já foi dito. Quantas vezes não há acidentes com carros ou autocarros de empresas estrangeiras e estas trazem a Portugal as suas equipas de especialistas para provarem que o pavimento tinha problemas ou a sinalização era inadequada? Muitas.
Como é evidente, A Foren trabalha para quem lhe paga e, por isso, a independência do trabalho pode ser colocada em causa. Mas os sócios dizem que não há margem para dúvidas: “Num tribunal criminal, o juiz não é obrigado a aceitar a nossa perícia porque não foi ordenada por ele. Há, inclusive, uma discussão sobre a nossa independência porque somos contratados por uma das partes envolvidas. A nossa independência tem de ser absoluta em razão de mantermos confiança no nosso nome”, diz Rui Mergulhão. Paulo Pinto reforça a ideia. “Alguém pode contratar-nos para fazermos cinco perícias sobre o mesmo caso, em áreas diferentes, e pode haver uns que são a favor da defesa e outros que são contra, e a pessoa pode agarrar e dizer: “Vou utilizar os que são a favor”. Nós não temos nada a ver com isso. Neste momento, temos um relatório entregue que não foi ao encontro daquilo que nos requisitaram, um caso de negligência médica, e não está de acordo com as expectativas que tinham e não utilizaram o relatório”.
Pareceres contrários à Ordem dos Médicos
Para quem como o autor do texto desconhecia por completo esta realidade – isto é, investigações privadas para fazerem prova em tribunal, seja de empresas como a Forem ou laboratórios de universidades –, ainda para mais metendo casos de Medicina, é curioso ouvir as histórias dos Mac Taylor, Stella Bonasera, Gil Grisson ou Horacio Caine à portuguesa, ainda que por interpostas pessoas. “Vamos imaginar que um caso de negligência médica ocorreu porque foi administrado um fármaco que faz mal. Temos um caso em mãos. Foi o uso de uma substância que poderá ter provocado uma septicemia num doente oncológico. O nosso diretor do laboratório técnico-científico é especializado em toxicologia e analisou se, de facto, as dosagens de morfina num doente oncológico poderiam provocar uma septicemia. Neste caso, uma sociedade de advogados contratou-nos, representava a viúva. Pegamos na prova documental clínica, fazemos uma análise a todo o expediente clínico que foi decidido e analisamos se tudo o que foi administrado pode ou não causar leges artis dos médicos. Se o médico fez o que era suposto fazer ou não”, explica Rui Mergulhão.
“A mesma coisa acontece com medicamentos. Um cliente comprou medicamentos e entendeu que poderiam não corresponder àquilo que acordou. E analisámos se o composto era o composto químico que adquiriu. E, não sendo, há uma violação contratual. E a conclusão foi que não era aquilo que ele tinha contratado”, acrescenta.
Questionado sobre a validade do trabalho da empresa, até porque é, por norma, a Ordem dos Médicos que analisa os casos de negligência médica – no caso de medicamentos é o INFARMED –, o responsável da empresa defende a sua dama. “Nós ajudamos os advogados a perceber se houve uma violação dos protocolos que a Ordem dos Médicos estabeleceu. Se os nossos peritos são professores catedráticos que ensinam os médicos, porque é que os nossos relatórios valem menos? Os nossos peritos vão a tribunal. Avaliamos o dano corporal (que resulta de violência, de acidentes rodoviários, de acidentes de trabalho, etc.). Imaginemos que uma pessoa se queixa de algo. O nosso médico avalia se em termos de compensação indemnizatória está ajustado. O IML dá uma incapacidade de 10%, mas o médico diz que é de 20%. Isso é discutido em tribunal”.
O crime do samurai
Com tantas áreas para analisar, é natural que a empresa tenha colaboradores especializados nas diferentes áreas, notando-se que, nos casos relatados, há ajudas preciosas de ex-elementos das forças policiais. “O caso de Évora, em que um miúdo foi morto, foi badalado na comunicação social. Um jovem morto em Évora por uma espada de samurai. E, nesse caso, foi morto por um senhor que diz que o matou em legítima defesa. Alegou que o jovem entrou em casa e o atacou com uma faca de cozinha. E ele foi buscar um sabre de samurai e cortou-lhe um braço e matou-o com cortes na cabeça. A família, através dos advogados, contratou-nos para garantir que ajudamos o Ministério Público (MP) a conseguir uma condenação por homicídio qualificado e não por excesso de legítima defesa, um indivíduo que tenta defender-se de um ataque iminente. O MP nunca acreditou nesta história, tanto que o indivíduo esteve sempre em prisão preventiva e foi agora acusado de homicídio qualificado. Estamos a coadjuvar os assistentes para garantir que toda a prova é devidamente analisada”.
Como é óbvio, Rui e Paulo não abrem todo o jogo sobre o seu trabalho, nem se a Polícia Judiciária vê com bons olhos as suas investigações. “Não somos elementos policiais nem detetives. Não seguimos pessoas, mas, na área da consultoria, temos um serviço que é o chamado intelligence gathering service, que é, no fundo, proceder ao levantamento de fontes abertas… Através de redes sociais, sites, etc. descobrimos pessoas”, elucida Rui Mergulhão.
Mas qual a razão para descobrirem pessoas? “Para efeitos reputacionais. Por exemplo, uma empresa quer contratar alguém. Quer saber quem ela é. Pode recorrer a esse serviço de recolha de informação em fontes abertas. É uma pesquisa feita a redes sociais. Também temos equipas que podem estabelecer rotinas, ver o que a pessoa faz… Por exemplo, tínhamos uma pessoa que estava a ser ameaçada com emails falsos, posts falsos nas redes sociais e tudo o mais. E que nos disse: ‘Tenho a desconfiança de que possa ser x’. Monitorizámos a pessoa, seguimo-la. A que horas entra, sai, para onde vai, com quem está, etc. Temos uma equipa chefiada por um antigo agente da PJ. E apanha-se o perfil comportamental da pessoa. Temos capacidade de recolha de informações. Somos recrutados por pessoas que querem fazer aquisições e fusões. E querem saber quem são estas pessoas, se são credíveis. Fazemos um levantamento exaustivo. Falamos com amigos, funcionários, antigos funcionários, contabilistas…”.
E quanto às ‘guerras’ com as forças policiais? “Já tivemos porque um relatório foi no sentido de demonstrar que o trabalho feito pela PSP foi de tal ordem medíocre que levou à acusação de um indivíduo que… se nos tivessem contratado, esta pessoa não teria sido acusada. Foi o arguido que contratou advogados e a Foren para mostrarmos ao sistema de justiça criminal que estavam errados. Ao ponto do juiz de instrução criminal concordar com isso”, acrescenta Rui.
Ausentes dos locais do crime
E nunca vão a um acidente ou crime em tempo real? “Poderíamos ir, mas nunca fomos. Portugal está muito fechado. Uma família, por exemplo, não pode nomear um consultor técnico por eles para acompanhar a polícia – há países em que, no momento do crime, existem técnicos forenses especializados. Mas em Portugal isso não é comum. É uma indústria que já existe no mundo anglo-saxónico há várias décadas e a faturar milhares de milhões e nós estamos a dar os primeiros passos. Em Portugal, não há nenhuma empresa como a nossa. Somos um centro de ciências forenses especializado”.
E também investigam casos de infidelidade? “Não somos uma agência de detetives. Temos capacidade para analisar o sémen, por exemplo, mas isso tem a ver com genética”. Percebe-se que no caso de terem o vestido de alguma Monica Lewinsky – estagiária de Bill Clinton que guardou um vestido com vestígios de sémen do então Presidente dos Estados Unidos da América – poderão analisar o pedido.
Assinaturas e falsificações
Continuando com o CSI à portuguesa, entremos então no mundo das falsificações. “A grafotecnia tem a ver com a autenticidade das assinaturas. Através de um conjunto de assinaturas feitas pelo pulso da pessoa, sabemos se determinada assinatura foi feita por ela ou não. A documentoscopia é complementar e analisa o documento em si. Por exemplo, a tinta: foi imprimida em duas máquinas diferentes? Com tinteiros diferentes? Numa ata de acionistas, foi deixado um espaço em branco, por exemplo. E, de repente, alguém deteta que há um texto adicional que não constava na data inicial. E contesta a autenticidade daquele documento e pede a sua análise. Podemos dizer que aquela tinta não foi impressa por aquela impressora. Podemos determinar se a folha é da mesma resma”.
Talvez a história mais bizarra contada pelos dois responsáveis ao longo de quase duas horas de entrevista seja a que envolve um hotel. “Há um vizinho que não concorda com a existência de um hotel, por exemplo. Faz a vida miserável aos hóspedes. Quando vêm para a varanda, incendeia plásticos e outros compostos químicos que perturbam e são tóxicos. Pediram-nos para analisar o ar e qual é o grau de toxicidade. Fazemos esse tipo de análise. É toxicologia. Conseguimos recolher fumos que têm na sua base toxicidade”.
A verdade da mentira
Rui Mergulhão é uma figura que tem sido convidada para trabalhos na televisão e nos jornais, onde exibe o seu conhecimento de mestre em Ciências em Emoções: “Aquilo que eu faço e em que trabalho é sobre a avaliação da credibilidade… Percebemos se há um desvio dos nossos comportamentos em relação àquilo de que estamos a falar”
Mas consegue saber se a pessoa está a mentir ou não? “Isso é uma falácia tremenda. Se os polígrafos fossem máquinas de verdade, teríamos um mundo excelente. Aquilo que fazemos é perceber como é que do ponto de vista fisiológico, emocional, comportamental, body language, analise linguística, etc. podemos perceber se aquilo que é dito é credível ou não. Uma pessoa pode ser altamente credível a dar uma informação falsa. E pode não ter credibilidade nenhuma a dar uma informação verdadeira. Isso distingue-se relativamente às pessoas que falam connosco, como é que pode ser determinado fisiologicamente. Tenho feito análises de comissões parlamentares de inquérito, por exemplo. Do caso do BES, analisar os depoimentos dos principais intervenientes. Fomos contratados pelo Público, em concreto. Mas tenho televisões que me chamam. No BES disse quais poderiam ser os pontos de interesse relacionados com os níveis de stress de cada um. Além de dizer que pode haver indícios de veracidade ou credibilidade nisto e isto”.
*Com Maria Moreira Rato