Nome marcante da poesia portuguesa contemporânea, sentou-se à mesa de Pascoaes, meteu conversa com Bernardim Ribeiro: «réu, rei, réprobo,/ raiz de um raro rancor/ no rumo de um ressentimento,/ rasga o regaço da rapariga/ roubada/ ao ramo do rouxinol». Foi para o campo com Cesário; do prado dos versos viram os seus leitores levantarem-se «rolas e perdizes, como imagens». O célebre piquenique de burguesas deu a vez a um admirável folguedo literário, capaz de fazer sair sátiros das pregas das saias de Vénus. A Ruy Belo, poeta que ocupa no cânone pessoal de Júdice uma posição central, tomou o chevrolet, que aquele tinha já tomado a Pessoa, para o conduzir em irónica contramão. E ao pintor Ticiano o lugar do cão do famoso quadro renascentista A Vénus de Urbino: «Ah! Se eu olhasse de frente para esta mulher nua e soubesse/ o seu nome […] poderia encontrar a porta que me faria entrar/ pela superfície negra do fundo».
Leitor voraz, poeta, ficcionista, ensaísta, tradutor, desde 2009, da revista Colóquio/Letras, Nuno Júdice, que morreu vítima de cancro no passado domingo, sabia cuidar da herança literária e cultural europeia, acrescentando-a. E sabia subir e descer na escala dos séculos, contar pelos dedos as décadas, desarrumá-las, fundir épocas e contextos, dissolver camadas narrativas. O tempo sempre foi para si uma instância relativa, desafiada, rompida nas suas linhas sossegadamente horizontais.
Algarvio de Portimão, dizia-se inscrito no PC – partido de Camões, pela mão de quem aprendera o português, «estrofe a estrofe, soletrando gramática e língua». Jorge de Sena, que tratou de o apear do pedestal mítico, ajudou-o a «puxar» Camões para o século XX, como deixa dito num número da revista Relâmpago. No último livro de poemas que publicou, Colheita de Silêncios (2023), faz o vate significativas aparições: «Transforma-se o ouvinte na música amada,/ nas suas doces entoações…». Fernando Pessoa é outra presença canónica numa obra poética que tende para a prosa que sempre recusou e que, ao nível profundo, empreende uma travessia na nossa história coletiva com olhar, ora mais grave , ora mais lúdico e a até irónico, de quem procura as razões obscuras que determinam as ações humanas. Não por acaso, o mar ocupa nos seus livros iniciais um lugar central. Não é o caminho da ação épica portuguesa, mas uma via devoradora, é o mar que deixa falar os mortos, que ergue os náufragos e os afogados, que sacode até os que não chegaram a partir, o mar revolto do vento frio e dos temporais, tocado pela bisnaga das tintas góticas e românticas, e o do rebuliço de cataclismos interiores. O mar que vem depor aos nossos pés figuras inanimadas, conchas limos, ciprestes, oráculos negros, viajantes exaustos, mulheres que correm como sombras, outras, mais simbolistas, de olhos roxos, fantasmas que, como é da sua natureza, desaparecem para aparecer em zonas posteriores da sua obra, refiguradas.
Em mais de meio século de vida literária pautada por uma disciplina diária de escrita, não fez Nuno Júdice como Pessoa: arrumou a sua vastíssima e multímoda produção – perto de 50 títulos de poesia, duas dezenas de livros de ficção, mais de uma dezena de livros de ensaio literário, um dos quais inteiramente dedicado a Camões, e ainda quatro volumes de teatro – como se arrumam as malas. «O problema do Pessoa», escreve Júdice em ‘A Mala do Poeta’, incluído em A Matéria do Poema (2008), «é que não viajava de arca atrás dele, porque se o fizesse/ teria de arrumar a arca, como se arrumam as malas. Odes no lugar/ das odes, sonetos com sonetos, e cada heterónimo no seu sítio». Por força das suas funções de comissário da área de Literatura da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e da mostra portuguesa da Feira do Livro de Frankfurt, em 1997 dedicada a Portugal, bem como das funções diplomáticas em Paris como conselheiro cultural da embaixada de Portugal (1997-2004) e diretor do Instituto Camões, Júdice andou sempre de mala atrás, à semelhança de Álvaro de Campos, o mais cosmopolita dos heterónimos. Ambos mostraram que nem sempre é prosaica a ação de arrumar a mala, que é em Campos atitude-metáfora da própria morte: «Mais vale arrumar a mala// Fim.»
A notícia da morte do autor de Teoria Geral do Sentimento (1999), aos 74 anos, veio perturbar os seus leitores e subtrair à palavra «fim» a natureza do artifício, o significado da possibilidade de um novo poema. «Fim» ganha o peso da derradeira demarcação.
Ainda não tinha sequer publicado o primeiro livro, já o poeta Nuno Júdice, hábil a desarrumar heranças, mantinha intimidade com a morte, parecia conhecer-lhe os modos, a respiração, o hálito infesto: «Era o tempo em que estranhas aves sulcavam a noite,/ o tempo em que cheguei a receber a visita de uma múmia,/ de uma autêntica múmia do baixo egipto quando,/ à noite, na casa deserta e tumular, dormia». E o tempo em que escrevia no suplemento Juvenil do Diário de Lisboa. Mais tarde, haveria de exumar, uma a uma, as musas da tradição e fazê-las desfilar, senis e caquéticas, esquecidas da sua antiquíssima função, no poema (’cena mitológica’), espaço tão apto a acolher a Bárbara escrava como Florbela Espanca (e o sentimento trágico da vida). Era já no tempo em que arrecadara vários prémios literários, a que se haveriam de juntar importantes distinções, entre as quais, o Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia, em 2013, e o Prémio Internacional de Poesia Camaiore, de Itália, em 2017.
Quando em 1972 fez a sua estreia literária na emblemática coleção Cadernos de Poesia da Dom Quixote, tornou-se, aos 23 anos, um poeta conhecido. Esse primeiro livro, A Noção do Poema, continha uma aventura excecional em que a linguagem ocupava o lugar de figura central: sujeitava-se, afirmava a inutilidade da poesia, carregava a força de uma provocação, arriscava. Era uma promessa transgressora que, nos anos mais recentes, se conteve no perímetro do jogo intertextual, se dissolveu em amenidades literárias. Nada, nesse tempo primeiro rimava com o jovem de poucas palavras, reservado, de gentileza tímida, dessintonizado dos formalismos da poesia 61, a pender para um discursivismo que o poeta recuperava e que «parecia ter encontrado em Herberto Helder o seu beco sem saída».
Fernando Assis Pacheco, que em 1976 o entrevistou, em tom brincado, um tudo-nada receoso ao querer saber do homem e dos dias regulares, disse-lhe que julgava que «Nuno Júdice era um poeta que não falava». E estaria nisto muito acompanhado. É uma imagem que o seguirá caninamente pelos anos fora. Curiosamente, no poema que fecha o volume Poesia Reunida (1967-2000), portanto estrategicamente localizado, vamos encontrar um poema de forte pendor autobiográfico que especula sobre as razões que o levaram a adiar a publicação de um seu esquecido poema sobre Chopin: «Não muito fecundo a falar chopin tocava, dizia eu; ou/ ainda: chopin era como delacroix quando explicava/ teorias/ – melhor do que tudo era descrever a tomada de/ constantinopla através de cores do que palavras;/ melhor/ do que tudo era descrever a noite caindo/ através de notas do que palavras».