Espanha. O enredo de Sánchez

O primeiro-ministro espanhol está enredado numa teia de casos e contradições. A lei da amnistia foi aprovada, mas não passará no Senado. Entretanto, chovem suspeitas de corrupção sobre figuras da elite socialista.

Se algo pode ajudar a relativizar a situação portuguesa após o ‘terramoto eleitoral’ de 10 de março – e os consequentes e exaustivos cenários de governação – será olhar para o que se passa no país vizinho. O Governo ‘Frankenstein 2.0’ – uma geringonça à espanhola – continua a operar sobre gelo fino, resta apenas saber quando (ou se) quebrará. Pedro Sánchez está determinado em aguentar-se ao leme de um governo ingovernável – refém de grupos independentistas e envolvido numa teia de casos comprometedores – mas as águas agitam-se cada vez mais. O foco em satisfazer as necessidades dos catalães em detrimento da formulação de um plano real de governo, não existindo ainda Orçamento, tem galvanizado a oposição.

A amnistia

A formação do atual governo espanhol assentou essencialmente em dois pilares fundamentais: a lei da amnistia – que apagará os crimes perpetrados pelos envolvidos no ‘procés’ de 2017, entre os quais se destaca Carles Puigdemont, líder do Junts e foragido da Justiça espanhola – e num futuro referendo de autodeterminação da Catalunha. Isto porque o PSOE saiu derrotado das eleições gerais de 23 de julho e necessitou do apoio parlamentar de forças independentistas. Mas a sede de poder toldou a capacidade de perceção da realidade de Pedro Sánchez, envolto num véu de luta contra a «ultradireita» em nome da «convivência entre espanhóis». Mas será que erguer «um muro de democracia» que, por sinal, ostraciza cerca de 45% do eleitorado espanhol, fará com que se consiga a tal convivência? É uma pergunta cuja resposta está a ser dada pelos próprios espanhóis nas ruas e será confirmada no próximo ato eleitoral.

A lei da amnistia acabou por ser aprovada, no passado dia 14, pelo Congresso dos Deputados com uma vitória tangencial de 178 votos a favor e 172 contra. É a segunda vez que a proposta é apresentada no Parlamento, sendo que numa primeira instância o Junts decidiu não aprovar por considerar que não ia ao encontro das exigências preestabelecidas no acordo entre as partes. A lei não passará no Senado e voltará ao Congresso. Num comunicado emitido na passada segunda-feira, os Letrados (membros do Senado) afirmaram que «se pode considerar este processo legislativo como uma reforma constitucional encoberta, uma fraude constitucional ou um produto normativo impossível». «Uma implementação deste tipo dinamita a normatividade da Constituição, que é uma das suas características principais enquanto norma superior do ordenamento jurídico», acrescentaram. Também a Associação Profissional da Magistratura (APM) se mostrou contra o projeto de lei: «A lei da amnistia é inconstitucional. […] é inassumível. Há que continuar a acreditar no Tribunal Constitucional», constatou María Jesús del Barco, presidente da APM. Outras associações ligadas ao ramo da Justiça também se fizeram ouvir. Mas o maior entrave à amnistia parece ser o Direito Comunitário, e a Comissão de Veneza redigiu um documento em que faz recomendações e constata que a proposta causou uma «divisão profunda e virulenta na classe política, nas instituições, na Justiça, na Academia e na sociedade de Espanha», apelando ainda a uma «maioria qualificada» no Congresso.

O Partido Popular continua firme na oposição, e o seu líder, Alberto Nuñez Feijóo, denunciou a amnistia, considerando que «é filha da falta de dignidade de quem a formou», fazendo referência ainda à ausência de um Orçamento e de leis concretas numa entrevista recente ao OkDiario.

Ainda Carlos Alsina, jornalista espanhol que recentemente recebeu das mãos do Rei de Espanha o prémio Francisco Cerecedo, deu nota de que «o procés foi um atropelo. Não é frequente pedir ao atropelado que se reconcilie com quem o atropelou, e menos ainda é pedir quando os autores do atropelo não o reconhecem como tal e, consequentemente, nem sequer pedem desculpa».

A teia do PSOE e a fruta de Ayuso

Como se a polémica formação do Governo não bastasse, o PSOE encontra-se também envolvido numa alegada teia de escândalos de corrupção que implicam o ex-ministro dos Transportes, José Luís Ábalos, o ministro do Interior, Fernando Marlaska, a atual presidente do Congresso dos Deputados, Francina Armengol, entre outras figuras da elite socialista. Todo o processo, que rapidamente se tornou mediático, fez tremer os alicerces de Ferraz, que se tem focado na tentativa de enfraquecimento da Presidente da Comunidade Autónoma de Madrid. Têm sido vários os pedidos de demissão dirigidos a Isabel Díaz Ayuso (presidente da Comunidade de Madrid, eleita pelo PP) por alegações de fraude fiscal do companheiro, porém, pode ter sido mais um tiro no pé do Partido Socialista, já que se poderá tratar de informação obtida de forma ilegal. O Ilustre Colégio de Advocacia de Madrid já se pronunciou e defende que se trata de algo «de extrema gravidade», uma vez que «foi produzida uma rutura sem precedentes no marco do direito à defesa, infringindo o seu próprio estatuto».

Ayuso – que fez da polémica declaração «me gusta la fruta» uma imagem de marca, chegando até a aparecer com uma caneca com a dita frase inscrita – acusou o presidente do governo espanhol de usar «todos os poderes do Estado», procedendo a caracterizar a atitude como «chavista, gravíssima e ilegal». «O setor da Justiça levou as mãos à cabeça com as fugas [de informação fiscal do companheiro], é a primeira vez em democracia que acontece algo assim», acrescentou a popular.

O governo socialista – que se vê também a braços com uma polémica que envolve a esposa de Pedro Sánchez – está cada vez mais periclitante, num momento em que os catalães serão chamados às urnas de forma antecipada, após o chumbo do Orçamento para 2024, e quando se prevê que o Banco Central Europeu corte ajudas de combate à pandemia entre julho e dezembro, avaliadas em 5 mil e 400 milhões de euros.