A grande tramóia dos paraguaios fugitivos

Em Junho de 1932, o Atlanta abriu as portas a um grupelho de 17 jogadores estrangeiros e inconvenientes.

Nascido em Buenos Aires, a 18 de outubro de 1835, Manuel Pedro de la Quintana Sáenz Gaona chegou à Presidência da República Argentina no ano de 1904. Experiência curta. Dois anos depois dava o lugar a Alejo Julio Argentino Roca Paz, não por vontade própria, não por vontade popular, mas apenas porque a morte, essa incansável Senhora da Gadanha, resolveu levá-lo consigo. A cerimónia de transferência de poderes foi bisonha mas mereceu um gesto amigável dos Estados Unidos que enviaram um navio de estadão de nome Atlanta em representação do seu presidente. O nome caiu bem numa série de moços, na sua maioria estudantes e interessados na política, que logo aí resolveram fundar um clube de futebol com o mesmo nome, o Club Atlético Atlanta. Enfim, na Argentina desse tempo qualquer motivo era bom para se fundar um clube de futebol, mesmo que metesse a morte de um presidente ao barulho.

O Atlanta – que acabaria por se tornar num persistente frequentador da I Divisão (64 épocas, ao todo) – não perdeu a aura de clube de rapazolas. Tanto assim que não tardou a ganhar uma alcunha convincente: Bohemios. Mas vamos dar um salto no tempo e entremos em 1931, o ano em que o futebol argentino entrou prodigamente no profissionalismo. Pelo caminho, a boémia e a estúrdia que era característica dos que dirigiam o clube, acabara por ter custos e os resultados podiam ser simpáticos para boémios de pai e mãe mas pouco interessantes para os adeptos. É então que uma ideia peregrina entrou pelas portas escancaradas do descontentamento: comprar um camião de estrangeiros, quase todos paraguaios e fugitivos da eminente Guerra del Chaco, um conflito bélico entre a Bolívia e o Paraguai, que se estendeu de 1932 a 1935 e originado pela disputa da região do Chaco Boreal, sendo uma das causas a descoberta de petróleo no sopé dos Andes. No mês de junho de 1932, dezassete jogadores estrangeiros, treze deles paraguaios, passaram a vestir a camisola do Atlanta. Um autêntico bacanal!

Antonio Sturla, o presidente do Atlanta, estava com craques argentinos pelas orelhas. Ou, melhor dizendo, pseudo-craques argentinos. Tinha adquirido no princípio da época gente com nome feito, o guarda-redes Octavio Díaz, Juan González, Pascual Molinas, José Bussano e Marcelo Tamalet, todos eles recebidos com um entusiasmo heroico rapidamente levado pelo vento das esperanças vãs à custa de cinco derrotas consecutivas. Resolveu dizer: «Basta!». E vai de trazer o tal contentor de paraguaios fugidos à guerra. Na verdade, Sturla não queria aquela tralha toda de uma vez mas, quando começou a negociar com os chefes de grupo, ouviu o ultimato: «O viajan todos o nadie!». Pensou dois minutos e respondeu: «Que vengan todos!». Foi já com toda aquela malta instalada numa quinta, La Quinta de Merlo, que algumas verdades inconvenientes começaram a vir a lume. Quatro deles, que se diziam jogadores do Atlético Posadas, tinham pouco ou nada de jogadores: eram missionários que encontraram refúgio atrás de uma bola, mesmo não sabendo muito bem o que fazer com ela. O mais conhecido do grupo, o defesa Romildo Etcheverry, não tardou a fugir para os braços do bem mais apetitoso Boca Juniors. Mesmo assim, no primeiro jogo em que os paraguaios vestiram a camisola do Atlanta, frente ao River Plate, cerca de 40 mil pessoas demandaram o estádio para ver os malabaristas trânsfugas. Não viram nenhum e o River ganhou fácil por 3-0. Na jornada seguinte, frente ao Boca Juniors (1-2), assistiram a um espetáculo ainda mais grotesco: além de não lhe darem nem de bico, como gosta de dizer o povoléu, os paraguaios abandonaram o campo a meio da segunda parte acusando o árbitro de estar a roubar o Atlanta por puro racismo. Antonio Sturla não teve outro remédio se não tratar de começar a despachar paraguaios pela borda fora tal como os deixara entrar às pazadas. Espalhou quatro ou cinco por clubes menores, três regressaram a casa, e ficaram apenas Tranquilino Garcete, Porfirio Sosa Largo e Aurelio Munt, ou seja, os que não enganavam ninguém e eram, na verdade, jogadores no autêntico sentido da palavra. Mas a confusão instalara-se como as raízes de um carvalho-roble: durante essa época, o Atlanta utilizou nada menos de 66 jogadores e, mesmo assim, não se safou de ter de jogar a liguilha pela manutenção. Dos que voltaram para o Paraguai pouco ou nada se sabe. Não conseguiram conservar as carreiras. Provavelmente esperavam por eles uma farda e um fuzil. Talvez revelassem mais pontaria com ele do que com os pés.