Richard Serra apurou a escala do espanto, dimensionou a vida uma vez mais face à imensidão terrífica, ressuscitando antigas formas de culto através da escultura e contrariando certa tendência das artes para um processo de mesquinhez, com a postulação das suas divindades decadentes ou já gastas, que se limitam a improvisar este mundo com material adverso. O tema de Serra parecia ser o destino, mas reverberando toda a experiência e aventura humana, de tal modo que as suas paredes inclinadas de aço enferrujado, os blocos monumentais e outras formas imensas e inescrutáveis serviam para retomar esses caminhos incitantes, evocando uma espécie de terror e entusiasmo diante do desconhecido, provocando em quem percorria os espaços onde intervinha uma sensação de renovado assombro, redespertando um estranho fascínio pelo mundo. Para ele, cabia ao artista recuperar a potência criadora, sendo que muitas vezes isso passava por uma crítica da configuração dos ambientes onde o homem se encerrou. A certa altura ele parecia ter entendido que a libertação viria de uma arte truculenta, que não apenas propunha outros rumos, mas precisava deitar abaixo muitos obstáculos. Diante de algumas das suas peças, parece que Serra nos cortava pedaço a pedaço, como um talhante obscuro e invisível. Este homem que começou por estudar literatura inglesa e que depois quis ser pintor, acabou por reconhecer que lhe faltava o génio para arrancar à inspiração uma visão absoluta, preferindo uma adesão mais direta à própria matéria do mundo, e talvez a sua importância como escultor nasça precisamente de uma noção clara das suas limitações. No fundo, ao propor ambientes imersivos e reparar a perspetiva monumental, tantas vezes através desses corredores inclinados, elipses e espirais de aço, ele estava a restituir-nos uma ideia de grandeza que se perdera pelo caminho, mas que está presente como um eco na nossa cultura, essas reminiscências bíblicas, esses grandes amplexos da arquitetura clássica que nos deixou nas suas ruínas um testamento da vontade do homem de se relacionar com os deuses. Agora que Serra morreu, aos 85 anos, a maioria das homenagens e dos necrológios, falam do seu contributo para a arte, sinalizando o modo como as suas obras trouxeram ao meio uma nova grandeza abstrata e uma nova intimidade física, mas a verdade é que este escultor repetidamente denunciou esses exercícios de clausura a que os artistas se têm dedicado, e tudo fez para retomar uma perspetiva mais audaciosa, mais ilimitada e digna. Como nos diz o pintor Mark Rothko, sem monstros e deuses, a arte não é capaz de representar o nosso drama, e nos seus momentos mais profundos o que esta expressa acima de tudo é essa frustração. “Quando eles [os monstros e os deuses] foram abandonados como superstições insustentáveis, a arte afundou-se na melancolia.” A monumentalidade de Serra apontava assim para esse resgate de uma escala verdadeiramente imponente, por isso mesmo o obituário do The New York Times reconhecia que as suas obras mais célebres nos remetiam para a escala dos antigos templos ou locais sagrados e para a inescrutabilidade megalítica de estruturas como a de Stonehenge. Há realmente uma vontade do homem de participar numa respiração mais vasta, mas se aquele diário admite que nas suas formas maciças se exerce um apelo místico, garante que este não provém da crença religiosa, e sim das distorções do espaço criadas pelas suas paredes inclinadas, curvas ou circulares e pela franqueza dos seus materiais. Isto é não saber ler os caracteres do sagrado, limitar a perspetiva religiosa a certos feudos, que apenas produzem a subjugação dos espíritos a doutrinas que rebaixam a experiência interior. No fundo, isto é já uma visão muito deturpada do fenómeno religioso.
Richard Serra morreu vítima de pneumonia na terça-feira, na sua casa em North Fork, Long Island. Tinha 85 anos. Há alguns anos, incomodado por um olho que estava sempre chorar, correu os médicos e viu o problema ser repetidamente mal diagnosticado, até finalmente se descobrir que se tratava de uma forma de cancro no canal lacrimal do olho esquerdo. Foi-lhe dito que a solução era simples, e que teriam de remover o olho. O risco de o cancro se espalhar não foi o suficiente para provocar nele qualquer temor, mas a ideia de ver comprometida a sua visão isso sim lhe parecia inaceitável, uma vez que poderia comprometer o seu trabalho. Por isso, o escultor recusou a cirurgia. Isto diz-nos muito da atitude de um artista que em entrevistas e conversas sempre contou e recontou os mesmos episódios que considerava centrais no seu percurso apelando a uma aura de singularidade e destino. E isto alinha com esse foco que organiza a sua obra e que vai no sentido de modelar o espaço e repercutir a sua força mutante na interioridade daquele que o percorre, e isto respeitando os materiais em vez de procurar adulterá-los para obter determinados efeitos. Em vez de aderir à artificialidade, preferia tirar partido das suas capacidades inerentes e até a exaltá-las. “A mim, desde cedo, interessou-me mais andar para dentro, através e à volta de…”, dizia Serra ao Público em 1999. “O modo como se entra para dentro, se atravessa, ou se anda em redor de um trabalho, tem a ver com antecipação e memória, mas sobretudo com o tempo que se leva a experimentar a obra.”
As suas peças eram montadas a partir de placas gigantes de aço laminado a frio, e recorria a fábricas que em vez de estarem habituadas a corresponder aos extravagantes pedidos dos ateliers de artistas, se dedicavam ao fabrico de cascos de navios. Eram tão pesadas que, para chegarem ao seu destino, atravessando pontes e sendo erguidas por gruas com um elaborado cordame, era necessário obter todo o tipo de licenças. Assim, transmitiam inevitavelmente uma sensação de perigo, erguendo-se sozinhas, sem parafusos, cavilhas ou soldaduras. A inclinação dependia das suas curvas e modulações de forma a garantir a sua estabilidade. E se os elementos planos, verticais e em forma de laje se seguram de pé isso deve-se a terem uma espessura que raramente fica a abaixo dos 15 centímetros. É um tipo de recurso aos materiais que evoca a mestria dos engenheiros pré-históricos, esses prodígios da antiguidade, como são as pirâmides egípcias. E num momento em que o mundo tende para a desmaterialização, em que a atenção das pessoas se foca em ecrãs e se perde em labirínticas projecções virtuais, o contraste que a escultura de Serra impõe só se tornou ainda mais radical. Quando abdicamos da geografia e dos territórios e relevos majestosos, este artista quis mediar essa relação, lembrando que “experimentar uma das minhas peças é sentir uma noção de tempo, do lugar e reagir a isso”. E ainda nos alertou face aos perigos da realidade em que nos estamos a encerrar: “Tudo aquilo que escolhemos na vida atraídos pela sua leveza em breve se abaterá sobre nós com o seu peso insustentável”.
Nascido a 2 de novembro de 1938, em São Francisco, o segundo de três filhos de Tony e Gladys (Fineberg) Serra. O seu pai, um imigrante da ilha espanhola de Maiorca, trabalhou como instalador de tubagens num estaleiro naval durante a II Guerra Mundial. Uma das memórias mais vivas de Serra ocorreu no seu quarto aniversário, quando o pai o levou ao seu local de trabalho para assistir a um gigantesco navio a levantar amarras, e Serra diz que percebeu então como “aquela quantidade de tonelagem podia tornar-se lírica”.