Foi-lhe difícil escolher o lugar da entrevista. No fim, acabou por decidir sentar-se num café de onde se via a fantástica multiculturalidade de Lisboa. Está sol. Estamos no Martim Moniz. Os seus olhos castanhos rasgados transmitem-nos tranquilidade, paixão e, ao mesmo tempo, inquietação. Desde os 14 anos que a vemos na televisão, quando nem ela própria sabia que faria da representação vida. Agora com 31, Jani Zhao, que integrou o elenco do recente filme ‘Aquaman e o Reino Perdido’, fala-nos do seu trabalho, da maneira como vê a sociedade e faz-nos viajar até aos estúdios de Hollywood.
Leiria, para si, é e sempre será um sítio que representa a ideia de casa. No entanto, já disse que já não reconhece a Leiria que há em si. O que é que isso significa? Significa que os espaços mudam como nós. Leiria está diferente. Está com uma energia diferente, por isso, já não a reconheço. O que não quer dizer que não seja extraordinária na mesma. Os cantos, os cheiros, são os mesmos. Associo muito a memória aos cheiros e às cores, imagens, texturas, coisas que nos despertam os sentidos. Alguns mantêm-se, mas temos de estar atentos. Tenho de estar atenta ao cantinho daquela rua e, aí, as memórias vão surgindo. É isso que faz com que a cidade seja sempre uma casa. Mas está muito evoluída, culturalmente muito mais forte, as pessoas estão muito mais na rua. Por isso, sempre que lá vou há sempre uma certa nostalgia feliz.
Não vem de um lugar de tristeza… Não! Em relação à tristeza, faço uma triagem muito forte. Não vivo a partir disso, ou da melancolia. Gosto muito que a vida se transforme, se torne noutra coisa. É sinal que há mudanças em nós, que estamos noutros sítios e que estamos em crescimento.
Quais as imagens que tem dessa infância? Como é que foi a sua educação? A minha educação foi entre a minha família biológica, da China – com muito amor, mas muito severa, mais sólida -, e entre a minha família de coração, de Leiria. Conhecem-nos desde que nascemos e sempre nos apoiaram muito enquanto os meus pais trabalhavam. Os meus pais, enquanto bons emigrantes, vieram para trabalhar, daí aquela questão da malta chinesa ser tão fechada… Vêm para cá para trabalhar! É uma sobrevivência que advém muito da condição de imigrante e as pessoas, às vezes, misturam um bocado as coisas. Eles queriam dar uma vida melhor aos filhos e esse era o objetivo deles. Apesar de sentir que de geração para geração – não só nos imigrantes – as coisas estão um bocado diferentes. Esta questão do capitalismo, do consumismo frenético, do valor absurdo que se dá ao dinheiro, à posição na sociedade, ao estatuto, ao emprego, acho que está a ser vista de uma outra forma pelas novas gerações. Tem que haver qualidade de vida, atenção à saúde mental, dividir melhor as coisas. Mas os meus pais não tiveram isso. Viveram o regime de Mao Tsé-Tung, vieram com uma mão à frente e outra atrás. Trabalhavam muito e quando vieram foram primeiro para Leiria e só depois nos mudámos para Cascais. Então esta relação com a família de Leiria foi muito forte, porque eles é que nos acolhiam nas férias escolares. Uma família super disfuncional, com as suas questões de pobreza, mas com o coração no sítio certo. Sempre fomos tratados com muito amor e afeto, ensinamentos da vida real. Era um contraste muito forte com a realidade que tínhamos em casa. Foi mesmo muito importante para mim conhecer várias realidades. Somos mais do que uma coisa.
E qual a importância que o Centro Comercial D. Dinis teve nessa altura? Foi onde os meus pais tiveram uma loja de relógios. É um lugar de descoberta. Nós sempre vivemos em liberdade. Os meus pais estavam a trabalhar, não podiam estar sempre em cima de nós, de mim e do meu irmão. Tive contacto com uma vida, uma dinâmica muito específica. O que é que é percorrer os corredores de um centro comercial pequenino, local? É uma coisa muito familiar, acolhedora, as pessoas conhecem-se. É como se fosse um bairro. As pessoas sabem da vida umas das outras, emprestam coisas, jantam juntas… É uma comunidade em autogestão. Tínhamos os cafés, as papelarias, a rádio de Leiria no último andar… Aquilo era a nossa segunda casa, aliás, a primeira… Passávamos lá muito tempo. As pessoas tomavam conta umas das outras. Era tudo muito seguro e confortável.
Como surgiu a paixão pelo mundo das artes? Não faço ideia! Ao contrário do meu irmão – eu sou a segunda -, que é tímido, reservado, cauteloso e introspetivo, eu sempre “desbravei mato”. Por norma, é o que acontece com os filhos mais novos, não é? Temos mais margem. A minha natureza sempre foi mais aberta, mais faladora, extrovertida. Dancei 10 anos ballet clássico pela ideia que a minha mãe tinha de que a dança era importante para o crescimento de uma pessoa. Experimentei vários instrumentos… Mas sem dúvida que foi obra dos meus pais – a minha avó paterna foi a primeira cantora chinesa a cantar inglês em Hong Kong. Com certeza que isso também teve influência. Os meus pais perceberam que eu era uma miúda expressiva, sem muita vergonha. Fazia peças de teatro na escola… No Estoril, tivemos o apoio de uma professora de expressão dramática e patinagem que era muito amiga dos meus pais… Ela também teve muita influência. Agora, não foi consciente da minha parte! Foi acontecendo naturalmente. Depois comecei a fazer trabalhos de moda. Fi-lo sempre com muito prazer, sem peso. Nunca senti pressão de ninguém.
Mas começou a trabalhar aos 14 anos em televisão. Nessa altura já estava mais consciente? Foi um recreio… Na altura, ainda era comum o hábito de, nas ruas, as pessoas abordarem outras para castings. Eu estava com uns amigos em Santos e uma rapariga passou de carro e abordou-me. Deu-me um cartão. Era uma agente que depois se tornou a minha primeira agente. Passado uns dias fui ao escritório dela. Perguntou-me se aparecesse um casting para televisão se eu estaria interessada. Respondi que não! Lembro-me que, na altura, eu não sabia o que queria fazer. Nunca tinha pensado em fazer isso. Claro que cheguei a casa e os meus pais ficaram ofendidíssimos. «Como é que disseste que não?». Acabei por dizer-lhe que caso aparecesse alguma coisa para me contactar. Passados dois ou três dias apareceu o casting para a Rebelde Way, eu fiz e fiquei. Foi uma experiência extraordinária e foi aí que percebi que gostava mesmo de fazer aquilo. Divertia-me imenso. Depois fui convidada para integrar o elenco de uma novela em horário nobre, e as coisas complicaram-se em termos de estudos. Percebi que me queria formar. Ainda era menor… Entrei para a escola de Teatro, em Cascais, e as dúvidas desapareceram.
A sua visão da arte foi-se alterando muito ao longo do tempo? Se antes se divertia, depois as coisas tornaram-se mais sérias… Eu nunca deixei de me divertir. No momento em que isso acontecer, é porque alguma coisa está mal! O divertimento, para mim, é sinal de alguma leveza perante nós próprios e perante o que estamos a fazer. Claro que há muita seriedade, trabalho, empenho, dedicação, mas a partir do momento em que eu deixar de ter essa vontade genuína de fazer as coisas, é porque me estou a levar demasiado a sério e, a partir daí, já entro num lugar demasiado consciente. Não sou assim e acho que essa leveza leva-te para lugares surpreendentes, dá-te a possibilidade de arriscares. Isto requer muito trabalho! Uma coisa que fui aprendendo com os anos é que a intuição é algo muito importante nesta profissão.
É uma profissão especial? Houve uma altura em que achava que os atores e atrizes eram seres especiais. Já não acho. Acho que somos comuns. Somos especiais apenas por trabalharmos com as emoções, mas uma pessoa que trabalhe com paletes também é especial, porque tem de conhecer as suas especificidades. Cada profissão tem a sua questão, por isso acho que devemos olhar para as coisas com esta simplicidade de que falava. Não deixo de me divertir e acho que gosto cada vez mais de filmar, representar! Coloco-me num lugar de procura, questionamento. Não há certezas nenhumas. A surpresa é fascinante nesta profissão.
Mas tem uma ideia sua enquanto profissional? De que forma se vê? Tenho sim! Mas está sempre em desconstrução. Há vezes onde estou mais disponível, mais atenta ao pormenor, outras vezes olho mais para dentro, a tentar perceber onde está aquela emoção. O trabalho que eu tenho vindo a fazer, o curso com a Olga Roriz, o trabalho que fiz com o João Brites, do Bando, todas estas pessoas pelas quais passei têm visões, linguagem, universos, totalmente diferentes. Mas é muito gratificante para um artista poder beber nisso tudo. «Preferes estar num sítio super extraordinário durante 10 anos, ou poderes estar a trabalhar com várias pessoas, de vários lugares, com várias maneiras de pensar?». Escolheria a segunda sem pensar duas vezes. Esta é a minha maneira de ver a minha profissão. O que me apraz nesta profissão é a instabilidade. Claro que nós nos queixamos muito desta condição, mas também é das coisas que gostamos… Não vamos ser hipócritas! Se não, tínhamos um emprego fixo, um horário laboral normal.
Diz não ter ilusões nem encantos, mas nesta área é fácil as pessoas deslumbrarem-se… Esse deslumbramento não existe porque já não sou uma miúda. A maturidade ajuda muito. Depois, porque eu não procuro visibilidade nesse sentido. Não procuro fama. Procuro descobrir novas coisas, ter novas questões, inquietar-me. Esta impaciência, insatisfação constante… Bebo muito disso. A descoberta de nós próprios, irmos às entranhas, aos nossos podres, é o que eu vejo na profissão. O que para mim é absolutamente inacreditável é o facto de, enquanto atores, a nossa matéria prima sermos nós próprios, o nosso corpo, a nossa voz, a nossa respiração, as nossas emoções, as nossas vivências. Ao fazer isso, ter o privilégio de fazer isso enquanto trabalhador, ser pensante, é uma bênção! Ao ter o privilégio de fazer esta arte estou também a conhecer coisas em mim!
As personagens também ajudam? Neste filme que estou a gravar que se chama Projeto Global, realizado pelo Ivo Ferreira, a Rosa – personagem que estou a interpretar -, tem um posicionamento político muito forte. Eu tive de passar por tudo isso. Como é que eu, Jani, me posiciono? Quais são as minhas questões perante a sociedade, perante este sistema que foi idealizado? O que é que eu acho sobre isso tudo? O meu deslumbramento não existe. O que me interessa é esta procura, sem respostas certas.
Tal como disse, estudou dança na companhia da Olga Roriz e teatro na Escola Profissional de Teatro de Cascais, do Carlos Avilez. Para si a formação é essencial? É um tema que tem estado na ordem do dia… Depende da pessoa, da experiência de vida da pessoa. Mas eu acho que a formação é importante! Se formos a ver, qualquer profissional, de qualquer área, tem de se formar. Temos de adquirir ferramentas, melhorarmo-nos. O lugar de aprendizagem é muito importante e o aprender nesta profissão é infinito. Há muitos atores que dizem que só passados muitos anos é que se pode chegar a um lugar de compreensão desta profissão. Se queres ser ator, e acho ótimo que queiras, vai estudar. É uma boa maneira também de se perceber se é realmente isso que se quer. Também porque é muito difícil fazer isto com consciência sem formação. Agora, não sou extremista ao ponto de dizer que uma pessoa sem formação não seja ator ou atriz. Se tivermos a trabalhar, somos aquilo, mas também depende de como é que a pessoa olha para ela própria. É preciso ter cuidado com o ego. O streaming democratizou as coisas, mas esta evolução das redes sociais veio transformar a visão que as pessoas têm desta arte. Não é por teres 100 mil seguidores que isso te faz atriz. Como é que compactuamos com isso?
Em 2017, foi uma das atrizes escolhidas para conhecer diretores de casting estrangeiros no programa ‘Passaporte’, idealizado por Patrícia Vasconcelos e pela Academia Portuguesa de Cinema. Foi dessa forma que conseguiu ser vista lá fora? Foi dessa maneira que eu percebi que a minha missão aqui em Portugal estava a passar para outra fase. Sendo filha de imigrantes, tendo um irmão mais velho que saiu do país aos 18 anos e se fez ao mundo, o meu caminho expectável era esse. Sair. Lá fora há mais oportunidades, os mercados são maiores, mas não sou nada iludida. Durante muito tempo fiquei por teimosia e convicção. «Não, não quero. Já que não há um lugar para pessoas semelhantes a mim, vou tentar construí-lo». Levei isso como missão e ainda o levo! Mas em 2017 – quando fui convidada para o Passaporte e tive oportunidade de conhecer as pessoas que conheci -, percebi que esse caminho não teria de ser só aqui. Podia continuar a fazê-lo em paralelo. Senti que era muito bem vista e muito desejada lá fora. Incentivaram-me muito. Na altura, estava bem no sentido emocional, psicológico, profissional. Já não estava naquele lugar de resistência. Ela mantém-se, mas houve uma altura em que ela falava mesmo muito alto. Era uma determinação muito forte e passou a ser algo mais desprendido. Houve ali uma certa libertação de responsabilidade. Não me cabe a mim agora transformar isto tudo sozinha. Quero que isso aconteça, mas não era preciso ser dessa maneira. Batalhei e precisei de me libertar dessa sina que eu coloquei a mim própria.
Já disse que tem uma vontade maior de se envolver em projetos de cinema independente, de autor. Quando recebeu o convite para integrar o elenco de ‘Aquaman’ o que é que lhe veio à cabeça? É uma oportunidade irrecusável? Contactaram a minha agente em Londres para fazer casting. Na altura, não sabia que era para o Aquaman. Fi-lo da mesma forma que faço todas as self-tapes. Desde 2017 fiz centenas. Faço na desportiva. Para muitos colegas meus é um momento de stress, de tensão e ansiedade .Eu faço tudo ao meu tempo, sem expectativas, sem a ideia de que é aquilo ou não é nada. Requer muito trabalho, seriedade… Como só depende de ti, se tu fores indisciplinada, deixas as coisas andar e, se calhar, não demonstras o que vales, até onde consegues ir. Mas vejo isto muito como um jogo e faço o melhor sempre. Vivo muito de consciência tranquila porque dou sempre o meu melhor. Olhando para trás consigo perceber o que podia ter feito melhor, mas na altura não conseguia. Isso é-me transversal à vida real. Se tu dás o teu melhor enquanto filha, mãe, amiga, trabalhadora, ser humano, chegas à cama e dormes bem! O Aquaman foi feito muito nesse sentido. Na verdade, foi um processo muito rápido. Fiz as self-tapes e, passado uma semana, soube através da minha agente que era a escolha deles. Depois ficámos à espera da aprovação da Warner, dos estúdios. Foi o que demorou mais um bocadinho. Só nessa altura é que fiquei com um nó no estômago porque percebi que se estava a tornar real. Agora, o que eu tenho dito é: seja o Aquaman, ou outra coisa qualquer, vejo da mesma forma. É trabalho! Se seria irrecusável? Depende de muitas coisas. Nada é irrecusável.
O que é que mais a surpreendeu nas gravações? O que é que mais guarda desse trabalho? Acredito que tenha sido muito diferente de tudo o que já tinha feito…O que mais me desafiou foi: ou é ou não é. Foi muito o que eu senti, porque trabalhas durante anos e anos e chegas ali a um momento em que pensas: «Agora faz isto como deve ser!». Foi muito exigente: o duvidares de ti próprio, o síndrome do impostor, controlares muito as tuas fragilidades… És posta à prova! Foi esse exercício: «Se me estão a convocar e querem que eu faça parte disto, vou fazê-lo inteiramente, com tudo o que tenho». Foi surpreendente o trato que a equipa de Londres teve comigo, o cuidado, a seriedade, o profissionalismo. Ver como é que aquela máquina funciona de uma forma brilhante, muito oleada. Foi fantástico conhecer o James [Wan – argumentista e diretor de cinema australiano] que é um génio. Acho muito comovente quando nós temos oportunidade de nos cruzarmos com pessoas que nos inspiram. Há admiração, apreciação. Trabalhar com os meus colegas, perceber que todos nós estamos nisto porque queremos pensar em mundos imaginários, que não façam parte da vida real… Podermo-nos colocar em lugares de vulnerabilidade e fragilidade… Vi o filme dessa forma. Era incrível que pudesse haver um Aquaman ou uma Aquawoman. Surpreendeu-me tudo isso e, sobretudo, de ser uma coisa alcançável. Ao chegares aí percebes que tudo aquilo que te tem movido e passado pela cabeça, está certo! «Eu não sou maluca!». E eu que tenho os pés bem assentes na terra… O “abrir portas”? Eu não quero abrir portas, já ando nisto há alguns anos. Ainda por cima uma pessoa com a minha condição, com as minhas questões, sendo mulher e uma minoria, é incrível. Aquilo que eu acho que é importante salientar é que qualquer sonho que tenhamos, é possível!
Já disse que o James Wan a conquistou por querer trazer a verdadeira Jani para o projeto. Pode falar-me um bocadinho da sua personagem e da forma como a criou? A Stingray é uma bad ass. Teve formação militar, não olha muito a meios para atingir os fins, é imponente, é uma figura que eu acho muito desafiante porque tentei olhar para ela não só com base nisso, mas com todas as camadas que fazem dela uma pessoa que também tem as suas fraquezas e fragilidades. Foi aí que me encontrei enquanto criadora e artista. Gosto deste exercício e desta construção de que as coisas não são só aquilo que vemos, vão muito mais para além daquilo que nos dizem e que nós podemos captar. O James convocou-me e, na primeira reunião que tivemos, ele teve a ideia de que a Stingray podia falar várias línguas. Eu gostei muito disso. Depois percebeu que a melhor língua seria o português, porque é a minha. Por isso é que digo que ele me conquistou convocando-me a mim. Percebeu as valências que eu tinha. Foi muito comovente e gratificante levar as coisas para além daquilo que parecem que são. É o que me entusiasma muito nesta profissão. As personagens devem ser surpreendentes. A personagem foi construída neste sentido. Uma mulher forte, com uma raiz que vai até lá ao fundo, mas que ela própria resvala dentro dessa verticalidade. Tentei na construção, desconstruir. Pelo que vi, estou muito contente. Estou de consciência tranquila. Tenho um sentido crítico imenso, sou a minha maior crítica. Mas quando está bem, não nos vamos estar a chicotear. Já basta a vida!
E os processos criativos são sempre muito diferentes? Como é que se encontra com cada personagem? Os processos têm sido muito diferentes, porque depende muito do projeto, da personagem e de como estás naquele momento. Lá está, é muito em paralelo. Não há fórmulas mágicas. É por tentativa e erro. Para a Rosa, a personagem que estou a interpretar neste momento e que é o processo mais longo da minha carreira até agora, está a ser muito diferente. O projeto foi adiado por razões de força maior e, por isso, já há um longo caminho. A Rosa que eu via no início, não é aquela que está neste momento. Eu própria mudei, eu própria cresci e vejo as coisas de forma diferente. A Rosa ajudou-me também a ver a vida de forma diferente. Mas para mim, o primeiro passo evidente, é ler bem as coisas. Ler várias vezes. A partir daí perceber as semelhanças e as diferenças que a personagem tem de ti… Também não me interessa muito fazer personagens que vivem muito de mim. Gosto mais de perceber o que é que as personagens fazem que eu não faria nunca! A partir das diferenças é que surge uma energia, uma pulsão, uma frequência, uma respiração, que não é a tua. Um olhar que não é teu… O trabalho do João Brites ajudou-me mesmo muito e eu acho que é mesmo um trabalho de salientar. É uma figura importantíssima no Teatro Português. Ele usa uma técnica, uma especificidade que é trabalhares o teu corpo e chegares a uma qualidade, uma fisionomia que não é a tua. Não é mesmo a tua porque dás por ti e estás a trabalhar uma coisa muito específica como o alargar das narinas. Vais alargando e alargando e a tua voz muda, o teu corpo muda. Isso é muito interessante. Irmos ao pormenor e ao detalhe, perceber como interfere com a tua fisicalidade. Portanto, os processos são todos muito diferentes. Mas eu acho que é sobretudo colocares-te nesse lugar de vulnerabilidade, de humildade. A representação para mim é de uma exposição máxima e absoluta. Não podes estar mais exposta.
Tendo trabalhado numa produção tão grande, como é que foi regressar ao teu país? O que é que mais te entristece no estado da cultura aqui em Portugal? Entristece-me a falta de investimento. Quando não há investimento na cultura de um país, não há qualquer noção e consciência da importância que ela tem para uma nação, para uma evolução, uma mudança para algo diferente. Não quer dizer que seja melhor mas, à partida, a diferença de que estamos neste lugar e podemos estar noutro, para depois estar noutro e noutro… Acho que isso é muito importante para uma sociedade, porque se não ela está estagnada, bloqueada e entra num lugar de depressão, opressão, ignorância e preguiça. Falta de investimento, falta de condições, falta de diferentes narrativas, falta de diferentes perspetivas perante as coisas, a vida, nós próprios, falta representatividade perante toda a panóplia que existe na sociedade. Estamos aqui no Martim Moniz, olhamos à nossa volta e há de tudo… Isso não está representado. Se não as vês representadas, elas não têm a capacidade de sonhar. De se reconhecerem, se identificarem, serem vistas. Acho que não há grande mudança se isso não acontecer. E lá está, não é para o preenchimento de quotas. É realmente olharmos para as coisas com olhos de ver! Para a existência e a evolução da sociedade. Acho que ainda estamos num lugar de olhar para trás para reconstruir o futuro, quando podemos olhar para o presente e para o futuro para idealizarmos juntos aquilo que pode acontecer.
Numa entrevista disse que com esta participação deu mais um passo numa missão pessoal sobre aquilo que representa e o tipo de narrativas que defende. Falava então destas novas narrativas onde existe mais representatividade… Sim! Faltam narrativas diferentes, as pessoas que estão a ser representadas e que têm o protagonismo, têm de vir de lugares diferentes! Devem ter perspetivas diferentes, querer coisas diferentes. Só assim é que pode haver uma diversidade para a reconstrução da sociedade, da memória coletiva de um país. O audiovisual, neste caso a ficção portuguesa, tem uma importância inacreditável nas massas e sinto sempre uma grande inquietação de como é que é possível não se aproveitar isso. «Ah, eles dão às pessoas o que elas querem». Não! As pessoas querem o que lhes derem. Porque não oferecermos o máximo possível? Arriscarmos e as pessoas poderem escolher! As pessoas identificam-se com coisas diferentes. Eu acho que através da cultura não só nos podemos perceber melhor a nós próprios, como ao outro. Aproximarmo-nos do outro. A cultura aproxima-nos. Isso é das coisas mais bonitas que há na nossa profissão, haver não só um distanciamento como uma aproximação. Nós não somos assim tão diferentes uns dos outros. Tenho pena de que as coisas não estejam num lugar onde já poderiam estar. Eu percebo que as pessoas precisam de ter retorno, mas deve haver o sonho, os ideais, a esperança. A partir do momento em que a sociedade reconhecer que tem uma data de problemas, haverá lugar para a mudança. O 25 de Abril não foi assim há tanto tempo.
Também disse que há muito pouco tempo tinha de ter uma justificação para existir nas produções. Sente-se uma estrangeira no seu próprio país? Sim, sinto e acho que para já isso se vai manter. Viu-se com o Aquaman. Pouco tempo depois do filme ter estreado, a minha agente ligou-me desolada, porque estava muito magoada com a maneira como as coisas foram vistas, a falta de atenção que se deu ao meu trabalho… Mas é uma coisa que não me surpreende. Já sei por experiência que é assim que funciona e está tudo bem. Felizmente tenho tido o privilégio de conhecer pessoas que pensam para além. Também é preciso sorte para nos cruzarmos com pessoas que nos veem realmente. Nem tudo é sobre nós. Isso já não é sobre mim há muito tempo. Vejo que é uma questão inerente à sociedade. Com o crescimento da extrema-direita percebe-se perfeitamente como é que está o panorama, aqui e no mundo. O panorama social e político está muito assustador. As pessoas estão muito assustadas, há um populismo que faz com que elas se sintam mais seguras… Eles conseguem identificar o inimigo, então há esta questão quase animal de nos protegermos a nós e aniquilar os outros. Há uma falta de memória imensa. É mesmo muito assustador. A malta em vez de estar tão agarrada aos telemóveis, devia fazer o exercício de reflexão, introspeção. A partilha real e sincera. Se há alguém que tem culpa são os que estão lá em cima. Nós somos peões, as vítimas desta porcaria toda. Mas nós temos o poder nas nossas mãos. Não nos devemos desresponsabilizar. Tem de haver mais preocupação genuína.
O que é que se segue? Tem projetos de sonho? As coisas acontecem naturalmente, mas com um objetivo. Os meus projetos de sonho, neste momento, são continuar a trabalhar com pessoas que me inspiram, que admiro, que me tornam melhor. Puxem por mim mas não apenas no sentido de sair da zona de conforto, porque nós precisamos de ter algum conforto para trabalhar, se não entramos apenas em sobrevivência, estado de alerta e sofrimento. E eu não sou muito dada ao sofrimento na vida. Acho que as coisas têm de ser prazerosas. Quero trabalhar com gente que me veja. Gente boa.