A obra original de Leonardo da Vinci é uma expressão singular da mente e da habilidade humana, carregada de significado histórico, cultural e emocional. A sua criação é vista como um testemunho da capacidade humana de expressão artística e criativa. A criação da Mona Lisa é envolta em mistério e fascínio. A identidade da mulher retratada na obra desconhecida, alimentou especulações e teorias ao longo dos séculos. A expressão enigmática do seu rosto, o uso magistral da técnica “sfumato” para criar nuances e profundidade, e a atmosfera misteriosa que envolve a figura, tornam Mona Lisa uma obra-prima intemporal.
Imaginar uma Mona Lisa concebida por algoritmos e dados, em vez das pinceladas e pigmentos cuidadosamente aplicados por Leonardo da Vinci, levanta questões profundas sobre o significado e a natureza da arte. Afinal, a genialidade artística não reside apenas na técnica, mas também na sua capacidade de capturar a essência humana, de transmitir emoção e de criar uma obra que transcende o tempo e o espaço.
No contexto da criação artística, tanto da Vinci quanto a inteligência artificial são impulsionados por processos criativos. Leonardo, com a sua mente brilhante e a sua insaciável curiosidade, mergulhava no mundo ao seu redor, observando, experimentando e explorando. Combinava assim, a observação científica com a intuição artística, o que resultava em obras que são tanto um testemunho da sua habilidade técnica quanto da sua profunda compreensão da natureza humana.
A inteligência artificial opera de maneira diferente. Ela é alimentada por dados e algoritmos, onde se processam informações para produzir resultados. Uma inteligência artificial que cria uma obra de arte como a Mona Lisa pode analisar padrões, estilos e técnicas de pintura, mas falta-lhe a intuição, a emoção e a compreensão humana que permeiam as obras de Leonardo da Vinci (ou talvez não!).
No entanto, isso não significa que uma suposta Mona Lisa gerada por inteligência artificial seja menos valiosa ou menos autêntica. Pelo contrário, ela pode representar uma nova forma de expressão artística, moldada pelas capacidades emergentes da inteligência artificial. Ela pode, assim, desafiar as nossas noções preconcebidas sobre o que é a arte e como ela é criada, abrindo caminho para novas formas de criatividade e inovação.
É importante reconhecer que tanto Leonardo da Vinci quanto a inteligência artificial são produtos do seu tempo e do conhecimento disponível. Da mesma forma que da Vinci foi influenciado pelas ideias e descobertas da Renascença, a inteligência artificial é influenciada pelos dados e algoritmos que a alimentam. Portanto, ao ponderar sobre uma Mona Lisa criada por inteligência artificial, devemos considerar não apenas o processo de criação, mas também o contexto cultural, tecnológico e filosófico em que ela surge.
Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, em “Mille Plateaux”, avançaram, nos idos anos 90, com a ideia de “máquinas criativas”, enquanto sistemas ou processos que produzem algo novo ou original. Muito embora estes autores não se tenham referido concretamente à inteligência artificial, neste contexto, tal poderia ser interpretado como a capacidade de um sistema de inteligência artificial gerar conteúdo original ou inovador sugerindo de certa forma que a inteligência artificial pode ela propria transcender as noções tradicionais de autoria e originalidade.
Para eles, a capacidade das máquinas de gerar novas ideias e obras desafia a ideia de que a criatividade é exclusivamente humana. Isso levanta-nos questões ácerca das definições estabelecidas e bem sedimentadas àcerca da autoria e da autenticidade na arte, desafiando-nos a reconsiderar o que significa criar e quem é o verdadeiro autor de uma obra produzida por uma qualquer inteligência não humana.
Por seu turno, o brilhante advogado e Professor de Harvard, Ryan Abbott, nos seus estudos sobre propriedade intelectual, explora as complexidades legais e éticas em torno das obras geradas por algoritmos. Ele questiona-se sobre como os direitos autorais devem ser aplicados a essas obras, considerando que a autoria pode ser atribuída ao programador que desenvolveu o algoritmo, aos dados de entrada utilizados ou à própria inteligência artificial. Esta reflexão realça os desafios jurídicos, sociais e éticos emergentes à medida que a inteligência artificial se torna mais proeminente na criação de conteúdo cultural e artístico.
Ainda neste domínio, a necessidade de repensar as leis para lidar com a criação artística mediada por tecnologia torna-se premente. Abbott argumenta que as normas atuais muitas vezes são inadequadas para abordar as novas formas de expressão facilitadas pela tecnologia, como sejam a arte gerada por inteligência artificial.
Já o filósofo Walter Benjamin, em “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, traz à tona a questão da “aura” única que envolve uma obra de arte original. Para Benjamin, essa aura é a sensação de autenticidade e a presença que acompanha a obra física, resultado da sua singularidade e da sua conexão com o contexto histórico e cultural em que foi criada. No entanto, com a reprodução mecânica, essa aura pode-se dissipar, uma vez que a cópia não possui a mesma autenticidade e unicidade da obra original.
Neste contexto, a inteligência artificial adiciona uma camada adicional de complexidade na medida em que pode gerar reproduções precisas e até mesmo melhoradas de obras originais, desafiando a distinção entre o original e a cópia. Isto levanta-nos, de facto, questões sobre como a inteligência artificial pode afetar a autenticidade e o significado cultural das obras de arte.
No entanto, também é importante notar que a própria noção de “aura” é contestada e evoluiu ao longo do tempo. Alguns podem argumentar que uma obra de arte gerada por inteligência artificial tem a sua própria forma única de “aura”, derivada da singularidade do algoritmo e dos dados de entrada utilizados.
Mas esta mesma inteligência dita artificial pode, também ela, democratizar o acesso à arte, permitindo que mais pessoas desfrutem de reproduções precisas de obras famosas. No entanto, também isso pode minar a autenticidade e o valor das obras originais, uma vez que a aura única associada à sua singularidade pode ser perdida no meio de uma inundação de múltiplas reproduções digitais.
É um facto que a capacidade criativa da inteligência artificial levanta questões sobre a originalidade e a autenticidade das suas criações. Enquanto as obras produzidas por inteligência artificial podem ser tecnicamente precisas e esteticamente agradáveis, falta-lhes a profundidade emocional e a intenção artística associadas às criações humanas. Podem as obras de arte, geradas desta forma, capturar a essência da experiência humana e serem consideradas tão significativas quanto as obras criadas por artistas humanos?
Em última análise, a reflexão de Walter Benjamin sobre a perda da “aura” nas reproduções mecânicas convida-nos a refletir sobre como a inteligência artificial está a remodelar a nossa relação com a arte e a cultura.
A hipotética Mona Lisa 2.0 desafia assim as nossas conceções tradicionais de autoria e autenticidade na arte. Quem seria o verdadeiro autor: o programador que desenvolveu o algoritmo, os dados de entrada utilizados ou a própria inteligência artificial que gerou a obra?
Para além disso, a integridade da arte e a sua conexão com a experiência humana podem ser comprometidas quando deixadas inteiramente nas mãos da tecnologia. A alma e a emoção transmitidas pelas obras de arte podem ser dificilmente replicadas por algoritmos, o que nos faz pensar sobre a verdadeira essência da arte e a sua relação com a humanidade.
Mas, e apesar dos desafios, a colaboração entre artistas e a inteligência artificial abre novas possibilidades para a inovação na arte. É um facto!
A capacidade de processar grandes volumes de dados e identificar padrões pode inspirar novas formas de expressão e levar a criações que desafiam as fronteiras da própria imaginação humana. Também é um facto que a possibilidade de uma Mona Lisa criada por inteligência artificial nos abre portas para a experimentação e a inovação na arte. Ao colaborar com máquinas inteligentes, os artistas podem ampliar os seus horizontes criativos e explorar novas formas de expressão.
Em última análise, a hipotética Mona Lisa 2.0 convida-nos a contemplar não apenas a natureza mutável da arte e da tecnologia, mas também a nossa própria compreensão da criatividade e da identidade humana. Enquanto navegamos por este mundo novo, somos convidados a equacionar as nossas suposições e a abraçar a diversidade de formas de expressão que o futuro nos reserva.
Tal como Nat King Cole, ao interpretar a canção “Mona Lisa”, nos ofereceu uma nova interpretação da obra cuja primeira gravação remonta aos anos 50 com Charlie Spivak e sua orquestra, infundindo-a com a sua própria sensibilidade e estilo único, a hipotética Mona Lisa 2.0 convoca-nos a todos a refletir sobre a evolução constante da arte. Da mesma forma que Cole trouxe uma nova camada de significado à canção, a integração da inteligência artificial na criação artística desafia-nos a reexaminar não apenas o processo criativo, mas também a nossa compreensão da criatividade e da identidade humana.
Ao atravessar este território desconhecido, somos assim levados a questionar as nossas premissas e a abraçar a riqueza de possibilidades que o futuro nos reserva e a Mona Lisa, tal como diz a canção, “segue indiferente aos suspiros dos Homens que se deslumbram pelo seu enigmatico sorriso”.