Aos 93 anos, um homem não deve grande coisa aos outros. O regateio e a conversa quotidiana poderão distraí-lo da ideia de que está a competir com tantas outras solicitações para reservar algum espaço na memória daqueles que talvez venham a recordar-se dele, e que serão, em suma, os seus coveiros. E, no entanto, com um gato acostumado a passear entre os livros, cultivado nesses ritmos de uma atenção funda, Eugénio Lisboa fez saber em algumas ocasiões que se não viajava nem passava muito tempo fora de casa era por consideração pela gata, Ísis, que dividia com ele um apartamento muito dado a essas manias sagradas, um espaço feito exíguo pelas pilhas de livros promovendo essa capacidade de afastamento altivo e de recreio íntimo “sob o olhar de deuses sem vergonha”. Mas restava ainda um assunto que poderia ser delicado entre um homem e o seu gato. “Morrer — isso não se faz a um gato./ Pois o que há de fazer um gato/ num apartamento vazio”… É provável que Eugénio Lisboa se tenha detido no poema de Wislawa Szymborska, e também que algum do seu esforço contínuo para não se irritar demasiado com a vida se tenha ligado a essa decência e ternura pela gata. Agora que este extraordinário leitor se desligou dos dias para assumir o seu lugar na correnteza dos textos, o mais custoso será pensar nesse vazio que se instalou naquele apartamento. “Nada aqui parece mudado/ e no entanto algo mudou./ Nada parece mexido/ e no entanto está diferente./ E à noite a lâmpada já não se acende.”
Eugénio Lisboa nunca se retirou, nunca se absteve de manter algum convívio, mesmo que fosse através dessa “conversa silenciosa” que a escrita vai permitindo, e que se mostra tão necessária, especialmente em épocas mais ruidosas. Era um ser magnificamente convivente, um apaixonado pelas ideias, um homem para quem comunicar era quase respirar. Sendo duvidoso que a posteridade fosse uma inquietação sua, com 28 anos considerava que há dois modos bem distintos de se pensar nela: “ou com a intenção premeditada de se lhe mentir, compondo, ou com a intenção, também premeditada, mas neste caso honesta, de se lhe impor uma verdade, ainda que rude e dolorosa”. Depois de uma vida inteira a zurzir naqueles que gostam de turvar as águas, de complicar desnecessariamente as frases, Eugénio Lisboa sempre se bateu por um tom de comunicação clara e directa (“A clareza orna os pensamentos profundos”), até brusca por vezes, aquilo para que não tinha a menor paciência era para as “manobras, transigências e pequeninas traições e perfídias, que são moeda corrente na vida quotidiana da nossa República das Letras”.
Uma frase de André Gide por que tinha especial predilecção era essa em que o escritor francês, numa carta a um admirador desconhecido, registava: “Mesmo connosco próprios, importa não nos demorarmos.” Trata-se, no fim de contas, de não aborrecer nem impor mais obstáculos ao gozo da vida. Desse mesmo modo, Lisboa aprendeu a estar-se um pouco nas tintas quanto à fortuna ou ao desaire que recaía sobre a sua própria obra. Grande parte desta distingue-se, contudo, pelo empenho e a generosidade em reconhecer o génio dos autores que mais horas de prazer lhe tinham dado, fosse que género fosse, procurando, tantas vezes, salvá-los dessas caricaturas preconceituosas que tecem todos esses cuja maior ficção que produzem é a ideia de que leram tudo, o mito de uma erudição que facilmente se desmorona. Desde logo arreliava-o sempre que via como um autor era culpado pelo facto de uma juventude num dado momento o ler ou deixar de o ler, chamando a atenção para o que há de imponderável, transitório e até caprichoso naquilo que motiva a juventude à frequentação dos livros. “Um autor pode cair subitamente no olvido sem que isso nada tenha a ver com o seu valor intrínseco. De resto, essa espécie de purgatórios, de que poucos escritores se livram, é característica do período que se segue imediatamente à morte do autor.” No caso particular de Eugénio Lisboa isto agrava-se pelo facto de há muito as obras daqueles que se dedicaram a ler os outros, fosse no ensaio ou na crítica literária, terem sido condenados em bloco a essa indiferença tão reveladora. Afinal, que os leitores revelem precisamente um desdém por aqueles que se aplicam a mostrar as múltiplas formas como um texto pode ser lido e aprofundado diz-nos muito sobre a vulnerabilidade dos leitores que vão aparecendo. Outra frase de Gide a que Lisboa se aferrou surge quando aquele diagnosticava o medo de nos deixarmos influenciar como uma doença típica do nosso tempo: “É que precisamente hoje, mesmo sem fazermos profissão de individualismo, pretendemos ter cada um a nossa personalidade, e, uma vez que essa personalidade não é muito robusta, uma vez que ela nos parece, a nós e aos outros, um pouco indecisa, vacilante ou débil, o medo de a perdermos persegue-nos e faz-nos correr o risco de estragarmos as nossas alegrias mais autênticas.”
Não só este foi um receio de que Eugénio Lisboa nunca padeceu, como, em certo sentido, a total ausência de qualquer espécie de “angústia da influência” é o que caracteriza o seu magistério enquanto leitor e crítico. A melhor razão para procurarmos os volumes em que se reúnem os seus ensaios, crónicas ou os vários tomos dos seus livros de memórias (sob o título global “Act Est Fabula”) é o facto de ele nunca se ter permitido abusar da paciência de quem o lia, e em vez de se iludir com a suposta originalidade dos seus juízos, preferia reconhecer como o equilíbrio do mundo pode depender de umas quantas noções verdadeiras, e, em vez de se entregar à verborreia, gostava de flutuar como um corpo entregue às derivas da sua memória, sendo esta, no seu caso, realmente assombrosa. Num tempo em que, cada vez mais, como notava Jacques Bainville, os velhos repetem-se e os novos nada têm para dizer, sendo a chatice mútua, Lisboa não estava interessado em colaborar nesta “estúpida guerra de surdos que se anda por aí a fomentar”. Assim, o seu maior talento era a sedução daquele que sabia entretecer um vastíssimo número de influências, construindo uma perspectiva sempre lúdica e variada, e deixando atrás de si um largo rasto de generosidade e de escolhas que permitem a quem vem depois aceder a uma impressão de grandeza que foi paciente e laboriosamente lapidada por um sagaz artífice, alguém que nunca perdeu de vista que o mais importante na literatura como no resto é gerar alento, traduzir seja como for essa matéria que nos fala, sem trair o ânimo. O apelo a que ao longo da sua vida ele deu expressão é antigo e intenso, e Eugénio Lisboa foi-lhe fiel desde logo no estilo da sua escrita, caracterizado pela sua desenvoltura, por aquela urgência que é própria do entusiasmo e por essa familiaridade abrupta com os autores e os textos, isso que no fim lhe permitiu assimilar esse registo “ruidoso de segredos e de oráculos”. A literatura para ele foi sempre, por isso, um testemunho apaixonado, e também isso lhe permitiu resistir, fazer-se um extraordinário ouvidor do melhor que os séculos foram transmitindo, para depois, diante da morte, só ter de se preocupar com a gata, e aquele vazio no apartamento. De resto, e depois de uma vida de encanto e de empenho nas suas lutas, nem se importaria que o seu próprio epitáfio fosse recolhido de entre as tantas frases que deixou sublinhadas na obra do seu tão amado Montherlant: “Felizes os que morrem sem tagarelices e sem choradeiras, na santa solidão em que morrem os animais e sós soldados no fundo remoto de um buraco de obus.”