Vítor Bandeira. As aventuras de um português curioso

1931-2024  Trapezista, antiquário, viajante.

Da janela do 10.º andar debruçada sobre o Atlântico, ouvíamos distintamente o zumbido do helicóptero de busca e salvamento, ora a aproximar-se, ora afastando-se, a perscrutar as águas à procura de algum náufrago. Deve ter sido por isso que o Vítor e a Lela se lembraram do tempo em que tinham tido uma traineira. «O mar era a minha paixão de criança», recordou ele, enquanto nos refrescávamos com um copo de vinho branco. «A primeira vez que saímos para a experimentar, lá em Sesimbra, o motor foi-se abaixo, e o mar começou a empurrar o barco para as pedras». Alarmado, o capitão, que ainda não tinha vendido o barco, pediu ajuda pelo rádio. «‘Marina Gaspar. Estamos em perdição, vamos de encontro àqueles pedregulhos. Diz que ouviste que eu escuto’. Foi engraçado», comentava Vítor divertidíssimo. «‘Diz que ouviste que eu escuto’. Nunca mais me esqueci. O gajo gritava tanto que mesmo sem o rádio o outro teria ouvido».

Viajante destemido, Vítor Bandeira era um poço de histórias sem fim, algumas das quais deixou registadas no livro Porque não?, publicado há um ano por iniciativa da sua amiga Rita Cardoso Pires, que assinou as ilustrações. Nessas páginas podemos ler como certa vez salvou uma cobra – «um lindo píton, desenhos geométricos com reflexos violeta» – de ir parar à panela de um qualquer restaurante especializado em Banguecoque; como passou uma tarde num cemitério de Quioto a observar as formigas; ou como no sul da Argélia o dono de um circo ambulante o convidou a urinar para um balde. Vale a pena recuperar as suas palavras: «Os africanos vinham ver os animais, maravilhados e receosos. Mas uma vez, um, com ar mais decidido e com modos mais misteriosos, pedira para falar com o guardador dos animais. Apresentou-se como curandeiro ou feiticeiro ou fosse lá o que fosse. Mas o que ele queria, o propósito da sua visita, era saber o que faziam, que fim davam à urina dos leões. Ele estava pronto a comprá-la, para tornar com o mijo do rei dos animais, doutra maneira impossível de obter, os seus amuletos e talismãs ainda mais eficazes. E a notícia correu veloz, de bairro em bairro, de aldeia em aldeia que tudo no mato se sabe depressa. E agora era um vender de urina que não tinha mãos a medir, os clientes vinham de todo o lado. Continuavam a dar espetáculos, mas isso já não era a fonte de receita. O mijo, o mijo do leão é que era».

Percebia-se de imediato que era uma figura especial. Quando combinámos a entrevista em sua casa, na Costa da Caparica, eu não sabia que tipo de pessoa esperar. Obviamente por ignorância minha, fiquei surpreendido que um senhor na casa dos 90 anos pudesse usar calças de cores tão berrantes, dois brincos numa orelha e o cabelo grisalho apanhado num rabo de cavalo. As maneiras eram de um perfeito cavalheiro e as barbas faziam pensar num sábio chinês ou num marinheiro português do século XVI. Por causa delas, uma vez na Guiné tinha sido tomado por Jesus Cristo. Mas o que impressionava mais nele era a calma, a paz que emanava, e os extraordinários olhos, aureolados de cinzento, límpidos e bondosos, de quem já viu muita coisa.

Vítor Bandeira era conhecido sobretudo pelas obras de arte e artefactos que trouxe de África e do Brasil e vendeu ao Museu de Etnologia. Ele próprio, embora não se considerasse colecionador, vivia rodeado de peças das geografias mais díspares – Colômbia, Peru, Bali, China, Angola, Nova Guiné… e até Estremoz.

Em jovem tinha sido atleta do Lisboa Ginásio, e trapezista voador, chegando a atuar no Coliseu dos Recreios. Pensou seguir Arquitetura, mas desistiu quando percebeu que não iria fazer coisas grandiosas como catedrais mas «casinhas para o pessoal».

Trabalhou alguns meses como moço de armazém, e acabou por tornar-se sócio de uma loja de antiguidades. «O que me interessava era as coisas mais primitivas, ingénuas». Era quase o único português a negociar nessa área. «Como arranjei objetos de qualidade, foi-me fácil relacionar-me muito bem com grandes nomes desses antiquários especialistas, franceses, de Nova Iorque e o diabo. Até que um dia disse: ‘Espera lá. Ando a comprar estas coisas de um lado para vender no outro. Não acho graça nenhuma. O que deve ser mesmo giro é ir à procura deles’». Vendeu a quota na sociedade, comprou um jipe Land Rover e partiu para África.

Na Costa do Marfim, chegava às aldeias e pedia para falar com o chefe: «Olhe, eu venho lá de Portugal, gosto muito destas coisas, sei que vocês aqui têm o tipo de objetos que me interessa. Nós também gostávamos de ter destes lá na nossa terra, de maneira que se tiverem alguns que queiram vender, cá estou».

A primeira leva de objetos foi exposta no Porto. Jorge Dias, o fundador do Museu de Etnologia, «ficou encantado» com o que viu. «Gostou muito de me conhecer, eu gostei muito dele, fizemos ali uma amizade rápida e o museu comprou-me as peças. Só meia dúzia dessas peças valem hoje tanto como custou na altura toda a coleção». Mais tarde, Dias convenceu-o a ir ao Brasil procurar mais objetos.

«De poucas datas me recordo, a não ser de sítios-chave, o Brasil foi 64-65, depois voltei, devo ter ido para a Guiné, para um lado assim qualquer de África, em 70 fui para a Indonésia. Fiquei lá quase quatro anos». O_25 de Abril apanhou-o em Bali. Foi aí que certa vez passou 11 dias sem comer. «Para ver o que acontecia ao corpo». Por volta de 1980 esteve em Bagdade, que associava às Mil e uma Noites, mas achou a cidade feiíssima.

Voltou a surpreender-me a meio da conversa, quando, com a maior candura, acendeu um ‘charro’. Sobre drogas, declarou: «Sou um bocado curioso. Nunca piquei nada, nunca chutei nada, mas ácido tomei N vezes, cogumelos, todas essas cenas tenho experimentado. Com bastante prazer…».

Nas vésperas da pandemia tinha voltado ao Brasil. Não gostou. Foi a sua última viagem, antes de  no passado dia 4, aos 92 anos, embarcar na derradeira jornada, rumo ao grande desconhecido.