As ações a tomar pelo novo Governo na área da Saúde, que serão conhecidas no anunciado Plano de Emergência, a apresentar ao país no prazo de 60 dias, são aquelas que porventura maiores expectativas suscitam, dado o seu impacto transversal em toda a população, em especial na mais carente e desprotegida.
Trata-se de, neste Plano, apontar as principais medidas, concretas, a executar até ao final de 2025 para tentar resolver os problemas que se agravaram nos últimos 8 anos.
Este é, portanto, um tempo de ação pelo novo Governo, mas que não afasta, na minha opinião, a necessidade de uma reflexão sobre os problemas de fundo do SNS e sobre a sua evolução e futuro.
Assim, e antes de mais, é preciso afirmar que o SNS constituiu, sem dúvida, uma das principais realizações do regime democrático, saído da Revolução do 25 de Abril, sendo aquela que, no campo social, maior impacto e reconhecimento tem por parte da população.
O SNS garantiu o acesso aos cuidados de saúde, a todos os portugueses, de forma geral, universal e gratuita, transferindo para o Estado o risco (e o receio milenar) da impossibilidade a nível individual, de fazer face, em termos económicos, a situações de doença.
O anterior regime dispunha de um sistema para a prestação de cuidados de saúde baseado em termos organizacionais e financeiros nas denominadas ‘Caixas de Previdência’, mas que era limitado e incompleto, deixando sem resposta muitas das necessidades da população, em especial, a rural (a mais numerosa, na altura) e a mais carente e desprotegida.
O SNS foi, assim, um avanço social fundamental e um instrumento decisivo de assistência obrigatória e de proteção social em caso de doença.
Hoje, há que reconhecer, no entanto, que o SNS vive uma situação de crise, amplamente conhecida e discutida na opinião pública, que se traduz por um grave problema de acesso da população aos cuidados de saúde, bem documentada no fecho e mau funcionamento das urgências hospitalares, na deficiente resposta dos cuidados primários, na perene existência de listas de espera para cirurgias e consultas, na inexistência de médicos de família para mais de 1,5 milhões de pessoas etc..
Esta situação que o país defronta, na área da saúde, não se deve à falta de qualidade dos seus profissionais (existirão, é evidente, erros cometidos por estes profissionais como em qualquer outra área ou profissão) nem à escassa atribuição de recursos financeiros para o funcionamento do SNS: de 2015 a 2023 os orçamentos do SNS aumentaram de cerca de 9,0 mil milhões (mM) para cerca de 14,0 mM, um acréscimo de cerca de 55%, com piores resultados para a população.
Os problemas críticos que estão na origem desta situação têm a ver, na minha opinião, com dois fatores fundamentais: i) a forma como ao longo do tempo tem sido feita a gestão do SNS e ii)a incapacidade politica de definir uma estratégia para o futuro do SNS que reconheça, sem dogmas e sem receio de custos políticos, a necessidade inevitável de introduzir mudanças estruturais.
A má gestão dos Recursos Humanos (RH) tem sido, a meu ver, uma das principais, senão a principal, causa da enorme ineficiência e da má resposta do SNS às necessidades da população. Um exemplo evidente tem a ver com a falta de planeamento e a incapacidade de antecipar as necessidades (previsíveis) de profissionais, em especial, médicos, o que conjugado com a deficiente resposta dos cuidados primários, está na origem do fecho e do mau funcionamento das urgências hospitalares, por falta destes profissionais no SNS.
Na realidade não há falta de médicos em Portugal: o país forma mais médicos do que a média dos países da OCDE e é o 8.º país com mais médicos por 1.000/habitantes, a nível mundial. Trata-se, com efeito, de uma falha de gestão em atrair e reter estes profissionais no SNS, dando-lhes condições que evitem a sua emigração ou ida para o setor privado.
A falta de gestão também se revela na forma como os RH são geridos: não existe na gestão pública dos RH, práticas e um enquadramento favorável a uma gestão por meritocracia, nem uma avaliação efetiva de desempenho individual, ligada a incentivos e penalizações.
Como em qualquer organização humana, a incapacidade de distinguir (e recompensar) as pessoas que se interessam das que não cumprem, leva inevitavelmente, sobretudo nas funções menos diferenciadas, ao nivelamento ‘por baixo’ do desempenho global da organização.
O problema é de gestão e não da qualidade dos recursos humanos na função pública: a qualidade média é a mesma no setor privado ou no público, a diferença é que estes recursos são geridos no Estado de maneira diferente e de forma deficiente.
No modelo em que foi criado e no qual o Estado assume todos os papéis: de ‘Produtor/Prestador’ dos cuidados de saúde; de Financiador; de Empregador de todos os RH e de Gestor de todas as unidades, o SNS nunca resolveu alguns dos problemas de acesso identificados como, por exemplo, as listas de espera para cirurgias e consultas e a atribuição de médicos de família a todos os portugueses.
Há, assim, a par de mudanças fundamentais na gestão dos RH, a necessidade de uma reforma estrutural do SNS e de uma nova estratégia, já que não se afigura avisado esperar resultados diferentes com o mesmo modelo e tipo de atuação.
Esta nova estratégia passa pela evolução do conceito e do modelo de SNS – Serviço Nacional de Saúde para o de SS – Sistema de Saúde no qual coexistam as três iniciativas: pública, privada e social. O Estado continuará a garantir a todos os portugueses o acesso aos cuidados de saúde, de forma geral, universal e (tendencialmente) gratuita, como até aqui, mas a prestação de cuidados de saúde poderá ser feita pelo Estado, como hoje, mas também pela ação das outras iniciativas – privada ou social – para o efeito contratualizadas.
Esta articulação entre todas as iniciativas, pondo à disposição da população todos os recursos existentes no país na área da saúde, e a contratualização pelo Estado às outras iniciativas da prestação de cuidados de saúde permite i) melhores resultados para a população e menores custos porque o Estado paga apenas por objetivos atingidos (uma prova evidente encontra-se nos hospitais em PPP´s que deram excelentes resultados, em termos de melhor qualidade e menores custos); ii) um aumento da acessibilidade da população aos cuidados de saúde, combatendo os problemas de acesso hoje existentes; iii) a comparação ‘benchmarking’ do desempenho de todas as iniciativas, o que se traduz pela existência de um estímulo externo permanente para a eficiência no setor da Saúde.
O Sistema de Saúde terá, assim, dois estímulos permanentes para a sua eficiência: um estímulo ‘interno’ vindo da introdução de mudanças fundamentais na gestão dos RH, como atrás defendi, e um estimulo ‘externo’ provindo da contratualização pelo Estado de cuidados de saúde às iniciativas privada e social que estabelece um ‘bechmarking’/competição entre todas as unidades prestadoras de cuidados de saúde à população, sejam elas, públicas, privadas ou sociais.
É tempo de assumir que a questão fundamental é a de garantir a todos os portugueses cuidados de saúde conforme se encontra expresso na Constituição e não a de saber se as entidades que os prestam são públicas, privadas ou sociais.
O SNS foi concebido como um meio para atingir uma finalidade fundamental: a de dar acesso a todos os portugueses aos cuidados de saúde. Trata-se de um meio que não podemos ‘sacralizar’ ou de negar a sua evolução por razões ideológicas que rejeitam a iniciativa privada, se daí resultarem melhores resultados para o país e para a população. Aliás, o modelo segundo o qual o SNS foi criado em Portugal e que não previa a participação de operadores privados ou sociais, não é o único possível. Outros países, como por exemplo, a Suíça (considerado como aquele que tem o melhor sistema de saúde na Europa), a Alemanha, a França e os Países Baixos (todos também com melhores sistemas de saúde que o português) têm outros modelos com uma grande participação da iniciativa privada.