1. Detesto a expressão ‘política de contas certas’. É marketing político, com uma base teórica ténue e contornos práticos nublosos, mas que condiciona o debate sobre a política orçamental: Ai, não se pode gastar aqui por causa das contas certas; Ai, não se pode aliviar ali por causa das contas certas. Num país que sofreu muito por causa de défices excessivos, trata-se de uma poderosa arma dissuasora. Será a defesa do ‘zero negro’ (o famoso schwarze null inscrito na constituição alemã desde 2009), ou seja, obrigatoriedade de ter as contas públicas equilibradas em cada ano? Ou será apenas a consideração que um défice, em qualquer circunstância, faz do governo um despesista impenitente e irresponsável?
2. Há muito que é sabido que o ‘zero negro’ é desestabilizador, pois obriga o Governo apertar o cinto orçamental quando a economia está ‘mal’ e a alargá-lo quando ela cresce bem. Não pode ser isto, portanto, o que se deve entender por ‘contas certas’. A melhor prática aconselha que défices e excedentes se compensem, grosso modo, ao longo do ciclo económico. (Parenteticamente, é no comportamento deste indicador – o chamado saldo primário estrutural, ou seja, o saldo expurgado de juros, fatores cíclicos ou episódicos – e não no saldo tout court, que as novas regras orçamentais da EU se baseiam para analisar a sustentabilidade da dívida pública dos seus membros). Entre 2015 e 2022 Portugal registou um défice primário estrutural que em média rondou os 0,4% do PIB, um valor baixo e confortavelmente consoante a trajetória de referência das novas regras orçamentais. Em 2023, o annus mirabilis de Fernando Medina, estima-se aquele saldo estrutural terá alcançado quase +2% do PIB. Serão isto ‘contas certas’? Ou, pelo contrário, o excedente é sinal de um orçamento desnecessariamente restritivo, realizado com compressão das despesas de funcionamento, não realizações de investimento público e com perda de qualidade de muitos serviços.
3. A chamada ‘regra de ouro das finanças públicas’ não preconiza ‘contas certas’, mas, antes, que se deve emitir dívida apenas para financiar défices em conta de capital, ou seja, investimento público gerador de crescimento e de impostos futuros. Nos últimos 11 anos o investimento em capital fixo das Administrações Públicas não chegou para cobrir o consumo desse capital (ou seja, para impedir a deterioração da capacidade produtiva dos bens de capital). Acumulando o investimento líquido (negativo) entre 2011 e 2022, poderemos ter uma ordem de grandeza da dimensão da redução do stock de capital público: cerca de 14 mil milhões de euros ou 5% do valor total da dívida pública em 2022. Não obstante este panorama, em 2023 os planos investimento público apenas foram executados a 75%. Contas certas? Não me parece.
4. Aqui chegados, eis um dilema para o novo Governo. Acreditando no marketing político, aqueles que suportaram, com maior ou menor resignação, a repressão da despesa pública, os cortes salariais, o aumento de impostos e degradação dos serviços de saúde e educação, e graças a quem as ‘contas estão certas’, querem agora o seu quinhão: ‘It’s payback time’ – clamam. Só que ninguém lhes explica que, na realidade, não existe dinheiro para distribuir. Como Teixeira dos Santos muito bem notou, a conta das administrações públicas central local e regional é deficitária em quase 2,5 mil milhões de euros (0,9% do PIB) e o excedente global de 3,2 mil milhões deve-se em exclusivo ao sistema previdencial, o qual não pode ser usado para pagar o bodo.