Querida avó,
Sou do tempo em que quando andávamos na escola, recomendavam-nos a compra de um estojo de lápis, com uma quantidade enorme de cores, para as aulas de desenho.
Inevitavelmente, no meio da imensa palete de cores, que ia das mais suaves às mais berrantes, aparecia sempre o lápis branco, que a maior parte das pessoas não sabe para que serve.
O lápis branco está longe de ser apenas mais uma cor dentro da caixa, existem várias funções para este lápis. Nomeadamente para iluminar algumas áreas do desenho, dar destaque a algumas áreas fazendo com que as sombras fiquem mais claras, dando volume aos desenhos.
No entanto, hoje, quando vamos a escolas falar dos nossos livros, e da tua vida e obra, o que mais me surpreende não é os alunos não saberem para que serve o lápis branco. Deixa-me perplexo não saberem o que era a castradora utilização do “lápis azul”, no tempo da ditadura. O “lápis azul” que servia para os censores decidirem o que devia ser noticiado ou divulgado.
Durante mais de 40 anos, nada seria publicado em Portugal sem que passasse primeiro pela censura. O conhecido “lápis azul”, embora tantas vezes usado noutras cores, abateu-se sobre milhares de livros, sobre a imprensa e sobre qualquer manifestação cultural.
Devíamos pensar em escrever um livro sobre este tema. Um “Diário de um Adolescente no Portugal de 1974” O protagonista hoje já pode ter cerca de 60 anos, ser avô, e relata como era Portugal no tempo da ditadura. Falando do que era proibido, do que eram as Colónias, a sociedade da época, a Mocidade Portuguesa… comparado com o que é hoje.
Tu que viveste intensamente esses tempos conturbados, terás, certamente, muitos conteúdos para este livro. Sobre a liberdade conquistada a 25 de Abril de 74, mas que só foi consagrada a 7 meses depois, em novembro.
Estamos juntos?
Bjs
Querido neto,
Ainda bem que falas do “Lápis Azul”! A censura constituiu um dos flagelos da ditadura de Salazar/Caetano, impedindo muitos autores, artistas e jornalistas de mostrarem livremente as suas obras e de as partilharem com o público que a elas sempre deveria ter tido acesso, caso a liberdade existisse.
Quando vou a escolas levo sempre provas de censura, como tão bem sabes. No entanto, ainda há pouco tempo, houve uma turma que me deixou boquiaberta com o comentário: «Isso está tudo riscado mas dá para ler o que está por baixo»… não percebendo que o que era censurado não podia ser publicado.
Não me esqueço de uma vez que a censura cortou tanto o que escrevemos, que a capa do jornal saiu com receitas de cozinha, imagina.
Por falar em receitas de cozinha, não é para me gabar mas eu sou boa cozinheira. Costumava fazer muitas vezes uns bolos chamados “russos”. As pessoas da minha idade devem lembrar-se, porque se vendiam em quase todas as pastelarias.
Um dia tinha acabado de os fazer e lembrei-me que uma das minhas tias gostava muito deles. Então decidi ir a casa dela levá-los. Mas primeiro telefonei-lhe para avisar: «É só para dizer que os russos já aí vão».
É claro que os nossos telefones estavam sempre sob escuta, mas a gente nem se lembrava.
Quando cheguei à porta da rua, estavam dois Pides que me levaram logo para a esquadra para ser interrogada.
E onde é que estão os russos, e quem os trouxe, como foi que conseguiram entrar em Portugal, quem os ajudou, por onde passaram , etc, etc.
Eu bem lhes dizia que era o nome de uns bolos que eu tinha feito, mas eles não acreditavam, «agora são bolos, boa, boa! E daqui a bocado serão o quê?».
E se não tem aparecido um elemento lá da esquadra que me conhecia muito bem a mim e a toda a família, acho que ainda lá estávamos agora…
Vai “comer um russo”.
Bjs