Fundado no dia 10 de Abril de 1924, o Recreio de Águeda, que só passou uma época na I Divisão de futebol, foi sempre um clube eclético, dedicando-se sobretudo à natação e ao ciclismo. Celestino Viegas, jornalista da velha guarda, chamou-lhes um dia Galos do Botaréu. Uma história de paixão e demasiados anos de sofrimento.
Notícia de jornal: «Acaba de se fundar nesta vila uma sociedade desportiva intitulada Recreio Desportivo de Águeda que conta já muitos associados. Preside à sua direcção Gastão Ribeiro Guerra». Data: 8 de Novembro de 1924. Outro clube representava, na altura, as gentes do Botaréu, o Águeda Sporting Clube mas as derrotas copiosas e consecutivas face aos rivais de Aveiro, o Beira-Mar, desgostava os aguedenses. Há portanto aqui alguma discrepância na data da verdadeira fundação do Recreio. Pelo que se pode consultar na imprensa local, os dirigentes do clube já tinham iniciado as suas movimentações vários meses antes, sobretudo entre gente ligada à forte indústria de cerâmica de Águeda e à Fábrica Carneiro e Guerra, propriedade de duas figuras fundamentais para o nascimento da coletividade, António de Sousa Carneiro e Gastão_Ribeiro Guerra. Sendo assim, depreende-se que a data da fundação seja acoplada à primeira reunião entre os ideólogos e que só tenha sido anunciada mais tarde aquando da aprovação dos estatutos. Não tardou que os galhardos moços do Recreio tomassem conta do Campo da Venda Nova, encostado à capela de São Sebastião (nome que tomou oficialmente na inauguração em 1930), terras que durante muitos anos pertenceram à minha família durante todos os cinquenta anos que o Águeda o usou como casa: «A miudagem tinha os seus espaços predilectos e jogar no São Sebastião seria o sonho de todos: os lequinhas do Botaréu jogavam à beira do antigo_Ribeirinho, os da Venda Nova, entre os quais Hernâni, no São Sebastião, ao pé da porta».
Refugio-me nos braços da minha infância e da minha adolescência, já antigas. Quando o Recreio de Águeda jogava nesse tão velhinho Campo de São Sebastião, nas traseiras da capela, havia grandes enchentes mas o Benfica não ia a Águeda.
Os meus avós diziam: «Águeda é o Mundo!». E era.
Para nós o Mundo não tinha fronteiras. Ia para além dos campos de milho a arder ao sol, para além das lavadeiras do Sardão e dos lençóis a brilhar de branco nas areias do rio, dos ciganos do Souto do Rio e das águas do Alfusqueiro. Às vezes, quando o adro ficava curto para os jogos de futebol que tinham como baliza a porta do cemitério, corríamos no pelado do São Sebastião a imaginar espetadores atentos nas bancadas de madeira. Depois, o futebol atravessou o rio. Deixou de haver bola nas traseiras da capela e passou a haver um estádio novo no Sardão, de onde as lavadeiras desapareceram de vez.
Na época de 1983/84 o Recreio de Águeda estava na I Divisão: pela primeira e única vez. No dia 26 de Fevereiro de 1984, o Benfica visitou Águeda e nunca houve enchente igual. Estive lá e vi. E muito não vi.
Sim, porque não havia espaço para todos. O público transbordou das bancadas até às linhas laterais, o campo foi reduzido, encavalitava-se atrás das balizas, os guardas republicanos passeavam a cavalo procurando impedir que as pessoas saltassem para dentro do pelado. Havia quem gritasse: «Tira o cavalo da frente!!! Quero ver a bola!». Bem podia gritar… De nada servia. A autoridade cavalgava a passo, farda a condizer e uma certa vaidade mal escondida.
A tarde do cavalo…
Nessa tarde, em Águeda, ninguém quis perder a festa.
Em Águeda, a vida do Benfica não foi fácil no primeiro tempo. À vantagem agregada por Nené, de grande penalidade, pelos vistos indiscutida, aos 19 minutos, respondeu o Recreio com um golo de César, um brasileiro de categoria que ainda jogaria no Vitória de Setúbal – 23 minutos. A festa continuava à beira rio, embora houvesse bem mais gente do Benfica nessa tarde no estádio do que propriamente do Águeda. O Recreio de Águeda tinha Tibi na baliza. E Jorginho como central. Esse mesmo Jorginho que passou pelo Sporting e continua a viver em Águeda, amarrado aos encantos do Botaréu. Depois jogavam ainda Rodrigues Dias e Paulo César. O capitão Sá Pereira. Nogueira, o grande Nogas do Atlético, Belenenses e Sporting, que marcou pela seleção um golo à Espanha, nas Antas, com três túneis, um dos quais a Camacho, que foi treinador do Benfica. Havia também Orlando e Flávio, Belo e António Jorge… Na segunda parte, para causar inveja aos plácidos e modorrentos guardas republicanos, de botas a brilhar de graxa no alto das suas cavalgaduras, a águia entrou a galope. E atropelou os Galos do Botaréu… O primeiro a chamar-lhes assim foi o Celestino Viegas, jornalista da velha guarda.
O público bem que grita: «Tira daí o cavalo!!!». Quer ver os golos que faltam. Mas não são apenas os cavalos que percorrem as linhas laterais a tapar a visibilidade. São os magotes de pessoas sem assento que que acocoram junto ao campo, que saltam de vez em quando como se tivessem molas nos calcanhares, que erguem os braços e barafustam e festejam à vez segundo as cores das suas simpatias. Mesmo depois do apito final de Carlos Valente, os cavalos não arredaram pé. Esperaram com paciência que, ordeiro, o povo regressasse a casa.
Nunca tal se viu em Águeda.
Nessa tarde de domingo, Águeda voltou a ser o Mundo! Na minha frente estava o cavalo. Resfolegando, digno como um juiz. Um juiz de quatro patas…
Há algo de doloroso no vermelho-sangue das camisolas do Recreio. Talvez uma nostalgia de grande clube que ansiava viver entre os grandes, como aconteceu na época de 1983-84. Talvez o sofrimento de ter sido arrancado de Alta Vila, do Campo de São Sebastião, o lugar onde nasceu, nas terras do conselheiro Afonso de Melo que fez questão de nunca cobrar um tostão às gentes da sua terra. O Recreio de Águeda foi sempre, de certa forma, um clube triste desde que, no dia 10 de Abril de 1924, Ângelo Teles de Meneses e António de Sousa Carneiro (o Neca Carneiro), oficializaram os seus estatutos. Gente que lutou para que, com as suas camisolas grenás, os Galos se pudessem bater, com um símbolo tão bonito como simples na camisola, do lado esquerdo, sobre o coração. No desaparecido Campo da Alagoa, disputou-se uma partida contra o Anadia Foot-ball Club. Estávamos em 1928, o Recreio era uma criança recém-nascida. Depois vieram as grandes vitórias, como a conquista do Campeonato Distrital de 1966-67, mas não a maior de todas elas, a que o levou ao lugar de Grande entre os Grandes, a subida à I Divisão nacional. O tempo mudou entretanto. Águeda cresceu para norte, o Campo de São Sebastião está agora soterrado onde se instalou a Câmara Municipal e os edifícios vizinhos. Já foi no Municipal, ali ao Sardão, que se comemorou a primeira e única subida ao escalão principal. Talvez o toque doloroso da camisola vermelho-sangue ainda persista por jamais o Recreio ter voltado ao lugar a que julga pertencer. Ou talvez a dor de nunca ter tido, de emblema ao peito por mais do que uma época nos juniores, o maior jogador de Águeda de todos os tempos, um dos maiores de sempre no Portugal por inteiro, Hernâni Ferreira da Silva. Talvez seja uma cor triste de saudade de tempos de glória que agora, que cumpre os seus cem anos, terá de transformar num vermelho vivo de esperança pelos anos que se abrem na frente de uma instituição que precisa do carinho dos aguedenses que tantos anos viveram de costas viradas para ela.