O.J. Simpson. O grande bicho papão do sonho americano

1947-2024. A ex-estrela de futebol americano morreu vítima de cancro.

Depois da mitologia do Oeste Selvagem, quando os EUA se modernizavam e procuravam amenizar os aspetos mais rudes e terríficos das suas origens, a lenda que se seguiu articulava as ilusões individuais, deixando os conflitos pela conquista do território e focando-se na aventura industrial a partir da qual viria a emergir a figura do self-made men. Contudo, e apesar de se ver dotada de uma elite obscenamente rica, continuava a faltar àquele imenso continente, marcado por diferenças extraordinárias, um elemento aglutinador, uma aristocracia que em vez de valores materiais se organizasse em torno de um outro código aspiracional, e foi esse vazio que viria a eleger as estrelas de cinema como os protagonistas das fantasias que permitiam colorir o interior dos contornos de uma existência que, para a larga maioria, esteve sempre longe do tal sonho americano. A cultura das celebridades veio a ser o grande elemento unificador, e a cultura popular norte-americana conquistou o mundo inteiro. Nas últimas décadas, um dos núcleos dessa elaborada arquitetura teve no seu centro O.J. Simpson, o antigo jogador de futebol americano que morreu no passado dia 10, aos 76 anos, vítima de cancro, e que depois de uma carreira que o viu tornar-se uma das lendas da NFL, e transitar dos anúncios e de aparições em programas e séries de televisão para papéis no grande ecrã, tudo isso viria a tornar-se uma memória distante à medida que ele via o brilho do seu carisma dar lugar a uma metamorfose dolorosa nas salas de televisão de todo o país, acabando por ser absolvido no ‘julgamento do século’, o qual se arrastou ao longo de 11 meses, e em que ele fora acusado do duplo homicídio, em 1994, da sua ex-mulher Nicole Brown e de Ronald Goldman, o amigo com quem ela manteve uma relação romântica. Este homem que teve uma infância problemática, e que, depois de se envolver num gangue com apenas 13 anos, passou por uma prisão juvenil dois anos depois, na sequência de uma rixa nas ruas de São Francisco, viria a entrar na linha depois de conseguir uma série de recordes estatais quando jogava futebol americano no liceu. Isto atraiu sobre ele a atenção das principais escolas do país, que começaram a disputá-lo, definindo um rumo que o levou a uma ascensão meteórica nos relvados, conquistando um Troféu Heisman em 1968 (galardão atribuído ao melhor jogador da NCAA, liga que reúne as universidades norte-americanas). A isto se seguiu uma carreira profissional em que cativou as audiências ao longo de 11 épocas na posição de running back, a maior parte delas ao serviço dos Buffalo Bills. E até aqui estamos ainda no final do segundo ato de uma estupenda tragédia que conta com outras três partes. É difícil apontar o clímax desta trama que subitamente capturou a atenção do país erguendo um espelho que viria a aprofundar as tensões raciais e de classe revelando esses elementos de podridão escondidos por baixo da maquilhagem, mas foi na noite de 12 de junho de 1994 que a ação se precipitou e a partir dali ficou claro como todos pareciam estar sujeitos a um destino que colocou as peças num tabuleiro em que as relações de oposição determinaram uma série de efeitos que não deixa distinguir entre heróis e vilões. As vítimas imediatas foram Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman, esfaqueados até à morte junto à habitação dela. A investigação recolheu uma série de indícios que logo fizeram de O.J. Simpson o principal suspeito, incluindo a famosa luva coberta de sangue e que foi encontrada na propriedade deste. Tendo recusado entregar-se às autoridades, O.J. protagonizou a mais famosa perseguição policial transmitida pelas televisões, tendo os canais interrompido a emissão das finais da NBA para mostrar aquele momento de absoluto desaire em que o ex-jogador segue a baixa velocidade ao volante de um SUV Ford Bronco, antes de ser preso. Contando com uma estupenda equipa de defesa liderada por Johnnie Cochran, que soube manobrar a seu favor as fortes divisões raciais no país, apenas três anos depois do verão escaldante em que a Califórnia foi submergida pelos motins desencadeados pela revelação das filmagens em que vários polícias foram vistos a espancar Rodney King, O.J. acabou por celebrar mais uma vitória, mas seria a última, e não só ficou a dever milhões aos seus advogados, como teve de suportar o ódio da larga maioria da população branca e latina. Depois do julgamento, nunca mais se libertou de um ciclo de autodestruição e de uma série de crimes, sendo que, em 2008, viria a ser detido por rapto e assalto à mão armada, vendo-se condenado a 15 anos de prisão em Las Vegas, e saindo em liberdade após nove anos de prisão.