Na semana passada escrevi sobre o fantasma do pântano. Ou seja, sobre a ameaça de inação que paira sobre o país, caso o Governo, o PS e o Chega persistam nas atuais posições. E acho que o Governo não está a fazer as coisas bem feitas. A ideia de meter no seu programa uma pitada de medidas do PS, outra (mais pequena) de medidas do Chega, e assim por diante, foi assaz bizarra e teve algo de ingénuo.
Não concebo um programa de Governo feito assim.
Depois, os apelos de Montenegro à ‘colaboração’ do PS, as piscadelas de olho a Pedro Nuno Santos, não têm pés nem cabeça.
Pela própria natureza das coisas, o Partido Socialista é o líder da oposição a este Executivo – e Montenegro não tem de contar com ele para nada.
Oposição é oposição, ponto final.
Evitando fazer isto ou aquilo para não ‘provocar’ o líder socialista, avançando com medidas para lhe agradar, o PSD parece um coitadinho a pedir ao adversário que tenha piedade dele e não lhe bata.
E há ainda outra coisa. Os portugueses votaram claramente numa mudança política. Votaram, até, numa rutura política – considerando o milhão e duzentos mil votos no Chega.
Ora, com receio do PS, que mudança poderá o Governo fazer?
Nenhuma.
A AD acabará por continuar a política que vinha a ser seguida, com pequenos ajustes.
O país tinha uma maioria no Parlamento, agora tem outra, mudou-se o disco mas corre-se o risco de a música ser a mesma.
Para se afirmar, a AD tinha de fazer o contrário do que tem feito: apresentar medidas que rompessem abertamente com a governação socialista, até para dar aos cidadãos uma nova esperança.
E, feito isto, devia convocar o Chega para essa mudança.
Com frontalidade, tinha de o levar a definir-se.
De o obrigar a dizer se está interessado em contribuir verdadeiramente para uma política alternativa à governação socialista – ou se só tem em mira derrubar o Governo e provocar eleições.
No fundo, obrigá-lo a dizer se está numa posição construtiva ou destrutiva.
Se, mesmo sem acordo de Governo, está disposto a viabilizar as propostas da AD que considere positivas – ou não está.
Se o seu objetivo for derrubar, então que isso fique claro – e não vale a penas andarmos aqui um ano ou dois a arrastar os pés.
Depois das eleições de 10 de Março, recordou-se muito o ano de 1985 e o primeiro Governo minoritário de Cavaco Silva. Quais foram os resultados eleitorais nessa altura? O PSD teve 30% (1.700 mil votos); o PS 21% (1.200 mil votos); e o PRD 18% (1 milhão de votos).
Comparem-se estes valores com os das últimas eleições.
Agora, a AD teve 29% (1.900 mil votos); o PS 28% (1.800 mil votos); e o Chega 18% (1.200 mil votos).
O paralelismo é impressionante.
A AD de Montenegro teve apenas menos 1% do que o PSD de Cavaco Silva; o PS de Pedro Nuno Santos teve mais 7% do que o PS de Almeida Santos; e o Chega teve o mesmo valor do PRD de Hermínio Martinho.
Estamos, portanto, perante uma situação política bastante idêntica.
E o que fez Cavaco Silva nessa altura?
Segundo a memória que tenho da época, cortou a direito, avançou com as medidas que ele achava necessárias, não se preocupou muito com táticas, revelou determinação e coragem.
Começou a apresentar no Parlamento propostas sobre propostas, inundou o hemiciclo de projetos de mudança, num autêntico vendaval que confrontava os outros partidos com as suas responsabilidades: ou aprovavam, ou chumbavam, ou se abstinham. E os cidadãos tiravam daí as suas conclusões.
Os deputados tiveram um trabalho extenuante.
Ao fim de um ano, Hermínio Martinho apresentou uma moção de censura, o Governo caiu, o país foi para eleições, o PSD fez uma campanha arrasadora sob o slogan ‘Portugal não pode parar’, e conseguiu um resultado nunca antes atingido: mais de 50% dos votos.
Uma vitória histórica!
M as este tipo de atuação exige um primeiro-ministro com verdadeiro espírito reformista, com uma convicção muito forte quanto às medidas a tomar, e com uma clara autoridade sobre o partido e sobre o Governo.
Não estou a ver Cavaco a pedir favores a ninguém, nem a piscar o olho à oposição, nem a pôr no programa do Governo medidas de outros partidos para os seduzir.
Não o estou a ver nesse papel.
E julgo que aí residiu boa parte do seu sucesso.
Foi ousado, foi determinado, deu aos portugueses a ideia de que havia alguém com a ambição de mudar o país – e, no lado oposto, existia um conjunto de partidos apostados em impedir a mudança.
Nas eleições seguintes, os eleitores premiaram quem queria mudar e penalizaram quem se opunha.
Montenegro, por este caminho, vai acabar com a imagem contrária: um homem com pouca ousadia para mudar, enredado numa teia de compromissos, não sabendo bem o rumo a seguir, chamando outros para aprovar aquilo que deveria ser só ele a decidir.
Não é muito difícil prever onde isto nos conduzirá.
P.S. – Anda por aí grande alarido sobre umas revelações de Passos Coelho. As pessoas não compreendem que se possa falar livremente do passado. Também passei por isso…