Eu, católica, me confesso

Lembram-se do povo que afluiu à Fonte Luminosa em defesa da liberdade e inspirado por Mário Soares? Hoje seria fascista. O arame farpado dos extremos é o limite à liberdade.

O problema já não são as opiniões, são os temas: há temas perigosos. É a ditadura do sim ou não. No entanto, há quem não concorde com a adoção por casais do mesmo sexo, quem concorde com o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas não o aceite como sacramento. E até quem nem concorde com a existência deste instituto. Há quem aceite a despenalização do aborto em quaisquer circunstâncias e há quem aceite a penalização em determinadas condições ou mesmo sem condições. Há quem defenda a eutanásia, os que são contra, os que são contra por razões morais e outros por razões éticas. Há quem ache que as mulheres se deviam dedicar em exclusivo às tarefas domésticas e à educação dos filhos (incluindo as próprias mulheres) e há quem defenda que homens e mulheres devem ter as mesmas funções e obrigações na gestão familiar. Há quem não concorde que a família seja uma instituição, quem a considere uma instituição mas não a instituição basilar da sociedade e quem tenha a convicção de que a família é o pilar da sociedade. Até existem pessoas que questionam a facilidade dos processos de divórcio, quem ache a nulidade do sacramento pelo tribunal eclesiástico uma palhaçada e quem não conceba a necessidade de formalizar uma união. Depois há as conceções de família. E aqui é mato. Pessoas do mesmo credo e religião têm conceções diferentes, assim como pessoas sem credo e religião têm conceitos distintos. 

Há de tudo. Basta entrar numa livraria, numa mesquita, igreja, consultar sites de partidos, associações, ler jornais ou ouvir podcasts, sair à rua, vá, para perceber que há opiniões para todos os gostos e sobre tudo. Umas mais bem fundamentadas que outras, mas todos acham qualquer coisa sobre a forma como devem coexistir na sociedade. Todos têm convicções, princípios éticos e a sua moral. Alguns têm como valor principal a não existência de valores, por exemplo. As pessoas, todas, acham coisas e formaram as suas opiniões percorrendo caminhos diferentes. Porque estudaram, porque a educação que tiveram as formataram, porque as experiências que viveram levou-as a terem determinadas convicções. 

Depois há os princípios fundamentais. Princípios inscritos nas constituições de cada país considerados invioláveis. É mais ou menos isto: podem fazer e pensar o que quiserem, mas daqui não passam. Uma espécie de contrato entre o povo e o poder político que limita e protege. O nosso tem como base a Democracia. Parece fácil e garantido. Mas cada vez é menos. Dizer e escrever aquilo que se pensa é cada vez mais perigoso, por mais certo ou disparatado que seja ou possa parecer. Se há dez anos atrás não teria qualquer embaraço em debater livremente a lei do aborto, a minha moral e o modelo de sociedade em que acredito, hoje, encolho-me. Ser católica exige que se tenha disponibilidade para o insulto (dentro e fora da Igreja). O debate, a liberdade de expressão, estão vedadas pelo arame farpado dos extremos. Do sim ou não, da lógica ou estás comigo ou estás contra mim. E por todos os lados: nem o Papa escapa aos insultos dos próprios católicos. É assim, devagarinho, que nos vamos silenciando uns aos outros: com o arame farpado dos insultos. Lembram-se do povo que afluiu à Fonte Luminosa em defesa da Democracia inspirado por Mário Soares? Hoje seria fascista.