Foi uma imagem que me ficou, embora a mais nítida seja do dia seguinte: quando acordei, no dia 25 de Abril, para ir para a escola os meus pais disseram-me que não havia aulas e ficámos todos em casa a tentar perceber o que se ia passar. Os jornais do dia tinham esgotado, embora não trouxessem informação sobre a Revolução. No dia seguinte, a escola reabriu e lembro-me perfeitamente das empregadas, na altura acho que se chamavam contínuas, retirarem os quadros de Américo Thomaz, e Marcello Caetano, respetivamente Presidente da República e presidente do Conselho do Estado Novo, o equivalente a primeiro-ministro.
Na escola pública, os rapazes ficavam separados das raparigas e ao mínimo erro uma régua, com ou sem buracos, entrava em ação pelas mãos da professora. Muitos tinham pior sorte e levavam nas orelhas ou onde a régua acertava. Curiosamente, pouco tempo depois, os filhos das professoras e dos restantes empregados foram apedrejados, algo que achei miserável, embora tudo tivesse acabado bem.
Fugir à Polícia Era um tempo em que sabíamos que, às vezes, tínhamos de fugir à Polícia sempre que um dos agentes mais zelosos aparecia enquanto jogávamos futebol na rua – praticamente deserta de carros. Era raro, mas acontecia. Ainda há uns anos fui à praceta que ficava à frente do nosso prédio e constatei que, hoje em dia, nem espaço para jogar ao berlinde existe, quando mais para futebol. O espaço está todo ocupado por carros… Nesse tempo, uma das brincadeiras prediletas dos mais jovens era ir à ‘chinchada’ aos quintais dos vizinhos, onde, muitas vezes, a fruta era apanhada tão verde que apenas contribuía para grandes desarranjos intestinais. Havia também um jogo meio sádico que era ao pião, pois quem perdia arriscava-se a ver o seu a ser destruído.
E existia uma coisa engraçada, que era o facto de haver imensos miúdos com a mesma idade no prédio, pois a habitação social obedecia ao número de filhos: quem não tivesse pelo menos três ou quatro, teria de procurar outra alternativa, algo impensável para os dias de hoje. Penso que as contas por quarto obedeciam, pelo menos, à regra de dois filhos. Se não estou em erro, e a memória não me atraiçoa, a renda era de 380 escudos, menos de dois euros, e ao fim de 25 anos a casa ficava paga. Sempre fiquei com a ideia, depois do que li, que no projeto dos Olivais, em Lisboa, à semelhança de outros bairros, envolveu os melhores arquitetos da altura, misturando todas as classes sociais. As moradias, que ladeavam os prédios, tinham um custo de 750 escudos por mês… Existiam os prédios dos polícias, dos professores, dos juízes e por aí fora. Quem estava deslocado tinha a hipótese de concorrer a essas casas.
Na rua faziam-se grandes jogos de futebol, de manhã à noite, sempre com a preocupação de não aparecer o tal polícia zangado com a vida. Havia os jogos dos mais crescidos, na rua de trás, conhecida como o Bloco 10, despontava Nélson Moutinho, pai de João Moutinho, e depois os mais novos. A rivalidade era enorme entre o Bloco 10 e o Bloco 9, o nosso. Mas, por vezes, fazíamos um mix para jogarmos contra a equipa das vivendas, que tinha sempre as melhores bolas de ‘cautchu’.
Para quem conhece hoje a zona da Expo deverá ter dificuldade em imaginar que por ali existiam duas petrolíferas, a SONAP e a SACOR, além da Petroquímica – quando o vento estava de sul sentia-se um cheiro nauseabundo – e do depósito de material de guerra, estes nos extremos opostos. No meio havia toneladas de contentores e por ali também não faltavam barracas e burros. E era neste cenário que muitos jovens das redondezas apareciam com cabeças de peixe espada, dentro de sacas de rede de batatas, e que apanhavam caranguejos às pazadas.
Nos Olivais havia um personagem que fazia as delícias dos miúdos, aos domingos, quando aparecia a apregoar ‘Ó ai’, trazendo doces que hoje seriam, seguramente, proibidos de comercializar, os famosos ‘esticas’. O domingo era um dia de festa para os mais pobres, pois era nessa data que, geralmente, também podiam comprar pacotes de tremoços, amendoins e pevides. Nessa época, foram muitos os miúdos que tiveram os seus primeiros patins oferecidos na festa de Natal da empresa em que trabalhava o pai. Por norma, as mulheres eram domésticas, pois tratar de meia dúzia de filhos não dava para grandes aventuras.
A roupa passava dos irmãos mais velhos para os mais novos, um dos adereços mais usados eram as cotoveleiras, os colarinhos das camisas eram virados do avesso, e a comida nunca se estragava, pois havia sempre a política dos aproveitamentos. O sentimento de solidariedade era bem evidente, havendo sempre mais um lugar à mesa quando passava um pedinte na rua.
Nos estádios de futebol, nomeadamente do Benfica e do Sporting, alguns adeptos faziam-se acompanhar de garrafões de vinho, além dos respetivos condutos para ‘cimentar’ o vinho. No final dos jogos atiravam-se as almofadas alugadas para o campo, muitas delas encharcadas, lembrando, de certa forma, as touradas. Os mais pequenos iam, muitas vezes, ao colo dos pais.
Fumar nos autocarros Nos transportes públicos era permitido fumar e os autocarros da Carris tinham dois pisos, sendo o banco da frente do andar de cima o mais procurado. As famílias menos remediadas compravam fiado na mercearia, onde existia o livro com as dívidas dos clientes. Devido às dificuldades, os filhos mais velhos começavam a trabalhar muito cedo, por volta dos 13/14 anos, e alguns acabavam por terminar o curso, quando o conseguiam, à noite. Era esta a vida antes do 25 de Abril pelas bandas onde cresci. Havia outras bem diferentes, umas melhor, outras pior.
P. S. 1 Era muito novo, tinha oito anos, mas recordo-me do receio dos mais velhos de irem para a tropa, temendo serem destacados para a Guerra Colonial.
P. S. 2 Nas páginas seguintes poderá ver as comparações entre os indicadores sociais e económicos do 25 de Abril de 1974 com os de hoje.