A lição dos portugueses

Os agitadores de hoje estão empenhados em tentativas para subverter as democracias do hemisfério norte acicatando os conflitos raciais em inúmeras frentes.

O 50.º aniversário da Revolução dos Cravos coincide com um tempo invulgarmente tempestuoso na política portuguesa. Mas o programa das comemorações não reflete a natureza tensa destes tempos. Em boa medida, isso é algo por que devemos estar agradecidos pois a revolta de 1974 poderia ter ficado marcada de outra maneira.

Sem um projeto económico coerente nos dias que correm, a esquerda por toda a Europa procura relevância chamando a atenção para o suposto perigo do fascismo que espreita das sombras. Apesar da facilidade com que a direita autoritária foi varrida do poder em poucas horas no dia 25 de Abril de 1974, o perigo fascista foi constantemente invocado pelos adversários políticos de esquerda ao longo dos 17 meses, muitas vezes caóticos, que se seguiram.

Nas eleições deste inverno, a ascensão-relâmpago da ruidosa força populista conservadora Chega levou naturalmente a extrema-esquerda a alertar para o novo perigo fascista. Mas a acusação tinha um caráter pouco convincente. Uma análise atenta mostra que o programa das comemorações (organizado sob um governo socialista) está em geral isento de mensagens políticas puras e duras. A revolução é invocada através da dança, das artes visuais, da música, de cartazes e de palestras com os protagonistas e especialistas sobre a época.

Alguns podem ver esta abordagem discreta de um aniversário explosivo como um sinal de maturidade. No ano comemorativo de 2024, Portugal evitou o tipo de rancor que marcou as últimas décadas da monarquia, quando vários aniversários históricos importantes se tornaram questões de fação. Porém, outros podem queixar-se de que a celebração é uma construção mortiça em que a mão oculta dos burocratas e dos influenciadores culturais está bem evidente.

Nas mãos de empresários culturais como André Malraux ou mesmo António Ferro, sempre prontos a adotar uma abordagem mais ousada, as festividades poderiam ter adquirido outra dimensão.

Não é difícil imaginar estes talentosos ‘encenadores’ a encomendar uma ópera em que o calmo Capitão Salgueiro Maia se tornava um herói dos tempos modernos como o que Beethoven retratou em Fidelio. Um Diego Rivera poderia ter feito muito mais do que os expressivos murais políticos de 1974-75 expostos no átrio da Biblioteca Nacional. Poderiam ter sido organizados debates, explorando episódios esquecidos, expondo dilemas que estiveram no epicentro da revolução ou reavaliando as ações de figuras centrais no processo. Se ainda estivesse entre nós, uma figura tempestuosa como Vasco Pulido Valente estaria no seu elemento, dissecando a revolução.

Mas, pensando bem, talvez seja demasiado cedo para uma avaliação frontal e integral da revolução que explorasse tanto as dimensões edificantes como as perturbadoras dos agitados anos 1974-75. Portugal tem um sentido de decoro exterior que tranquiliza e seduz os visitantes que chegam de zonas da Europa hoje divididas, mas a lava incandescente da erupção vulcânica de 1974 ainda pode levar algumas décadas a arrefecer.

As lutas pelo poder de 1974-75 assistiram a estonteantes reviravoltas do destino, alianças improváveis, inimizades ferozes entre forças que à superfície tinham muito em comum, alegadas traições, e compromissos de última hora para evitar a guerra civil naquele barril de pólvora em que Portugal se tinha transformado no outono de 1975. Inevitavelmente, uma avaliação imparcial dos homens e dos acontecimentos iria estilhaçar a interpretação heroica de um acontecimento que mudou a História, que é talvez a que agrada à maioria.

Compreensivelmente, a esquerda radical não tem vontade de aprofundar demasiado o papel que desempenhou, especialmente em 1975. É inevitável que para os portadores da chama revolucionária se torne doloroso pensar, em momentos de candura, que as suas quezílias autodestrutivas foram em grande medida responsáveis pelo colapso abrupto da revolução a 25 de Novembro de 1975.

É altamente improvável que a cerimónia oficial dedique muito tempo aos inocentes derrotados no processo revolucionário. Pensamos de imediato nos cidadãos portugueses de diferentes origens raciais que tinham alinhado com as autoridades pré-1974 e até lutado do seu lado.

Poderia ter sido evitado o êxodo de cerca de um milhão de pessoas em 1974-75 caso as lutas de poder ideológicas não tivessem cegado as fações civis e militares relativamente às suas responsabilidades de precaver uma tamanha perturbação? Não hesito em dizer que o desaparecimento de várias sociedades multirraciais promissoras em África foi uma calamidade histórica.

Os agitadores de hoje estão empenhados em tentativas para subverter as democracias do hemisfério norte acicatando os conflitos raciais em inúmeras frentes. Portugal até aqui tem sido poupado às perturbações graves dos conflitos amargos (e muitas vezes artificiais) que afetam sobretudo os países anglo-saxónicos. Se a independência dos territórios ultramarinos tivesse ocorrido pacificamente e sem deslocados, hoje a África lusófona poderia ser um modelo do triunfo da harmonia racial sobre o antagonismo.

Falando ainda sobre as vítimas, uma das menos faladas é a própria profissão de soldado. O golpe de 1974 emergiu da exasperação dos militares com a conduta pouco exemplar dos governantes civis. Os militares não conseguiram afirmar-se como uma vanguarda revolucionária, capaz de impor uma nova ordem radical. Diga-se em abono dos militares da esquerda moderada, que mostraram coerência suficiente para impedir o desastre no final de 1975. Mas aí as relações com os políticos civis já eram tensas. Quem tenha lido a recente autobiografia de Francisco Balsemão não terá dúvidas sobre até que ponto que chegava essa tensão. Por sua vez, Eanes e vários veteranos do Movimento das Forças Armadas não hesitam em denunciar a negligência a que os militares foram votados. Talvez em nenhum outro momento da História de Portugal os militares tenham sido tão irrelevantes como são hoje.

Nos últimos dias, Bruno Maçães, um comentador português com alcance global, felicitou Portugal por ter demonstrado um admirável bom senso nos seus costumes contemporâneos, enquanto outras partes do Ocidente parecem estar à beira de um colapso nervoso.

Ironicamente, 50 anos depois de uma grande insurreição, os portugueses parecem dar lições a países outrora conhecidos pela sua moderação. Um acontecimento político dramático está a ser assinalado sem ser distorcido por uma injeção maciça de política contemporânea, o que de si não é um feito pequeno.

Há cinquenta anos, houve uma época de mudança há muito devida, com esperanças radicais imperiosas, a que se seguiram de imediato desavenças ferozes, bem como manifestações de arrogância e de tacanhez. O país foi levado à beira do precipício, mas a contenção e o bom senso prevaleceram, chegando-se a compromissos ambíguos que esvaziaram a militância ideológica.

Não é uma questão de somenos importância que Portugal atualmente pareça ser capaz de lidar com o seu passado enquanto outras nações europeias mais fortes se digladiam em quezílias exageradas em torno dos mais diferentes assuntos.

Ao embrulhar o melodramático aniversário num sentimento brando, Portugal mostrou uma perspetiva pragmática que países divididos como a Grã-Bretanha ou a Espanha fariam bem em estudar e com a qual talvez pudessem aprender numa altura
em que enfrentam os seus demónios históricos.

Historiador, autor da biografia salazar  – o ditador que se recusa a morrer. está atualmente a escrever um livro com o título provisório Portugal’s Western Journey, 1890-2025: Adaptation, Resistance, and Detachment

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