Querida avó,
É bem verdade que em Abril de 1974 eu tinha pouco mais do que um ano.
É óbvio que as memórias que tenho da conquista da Liberdade foram aquelas que fui herdando.
Já te falei inúmeras vezes do meu avô Alberto que, apesar de ser analfabeto, queria estar sempre informado. Apanhava papéis na rua, durante a madrugada, que deitava para o fogão a lenha mal acabavam de ser lidos.
Ao longo destes 50 anos Portugal evoluiu imenso.
A esperança média de vida, como sabes, era baixíssima. Aliás, relatas frequentemente uma notícia, de um jornal dos anos 70, em que informavam sobre a morte de uma idosa de 40 anos que tinha morrido atropelada numa passadeira. Aos 40 anos, apesar de serem considerados idosos, muitos já eram avós. Hoje, aos 40, muitos ainda não conseguiram sequer comprar a sua primeira casa.
Grande parte da sociedade era analfabeta, pobre, com imensos filhos, e trabalhavam no campo ou em fábricas em condições miseráveis.
Os netos e bisnetos desta população são aqueles que hoje tiram cursos superiores e têm apenas um filho.
A mortalidade nos primeiros anos de vida era bastante comum, assim como ver crianças, em idade escolar, a trabalhar.
O Serviço Nacional de Saúde (de que tantos se queixam), nem sequer existia. Só os ricos podiam ir ao médico.
Foram estes, e outros, ensinamentos que herdei dos meus quatro avós (analfabetos)…
Confesso que não entendo quando alguém diz: «Antigamente é que era bom!»
Seria bom para alguns privilegiados mas, certamente, não seria bom para a maior parte da população.
Recordo-me de uma embalagem de farinha “A Mariazinha” que existia na casa dos meus avós. A publicidade dizia: «O seu marido bate-lhe? Não pode com a força dele? Pois tome farinha de Fava, ou Favacau d´A Mariazinha e veja como cria forças para até o atirar pela janela fora!»
Como evoluímos!
Bjs
Querido neto,
Chegámos a uma das datas mais importantes da nossa história: o dia 25 de Abril. E juro que me custa a acreditar que já se passou meio século!! Tu eras uma criança e claro que não te lembras de nada, e aqueles que são ligeiramente mais velhos, só se lembram de que nesse dia não houve escola.
Nós andávamos muito preocupados porque esperávamos a toda a hora um golpe de Estado – mas um golpe de Estado da direita, dirigido pelo General Kaúlza de Arriaga.
Na noite de 24 para 25 de Abril eu estava no Coliseu dos Recreios a ouvir ópera. Mais exatamente a “Aida” com a Joan Sutherland e o Alfredo Kraus. Foi um espetáculo extraordinário e, como acontecia nessas alturas, todos atirávamos cravos para a plateia.
Quando saí e vi uma chaimite cá fora, assustei-me. Seria o Kaúlza? E fui rapidamente para casa, onde o meu marido me sossegou: ele tinha estado a ver na televisão, passava-se qualquer coisa estranha, mas de direita não era.
E o resto já toda a gente sabe.
Passado um ano, foi organizado um concurso em todas as escolas, com uma única pergunta: «O que foi, para ti, o 25 de Abril?»
Eu fiz parte do júri – e aquilo foi terrível, porque eram folhas e folhas e folhas onde se lia sempre a mesma coisa, «foi o dia da liberdade», «foi o dia em que acabou a ditadura», e não passávamos disso. Até que de repente, o Adelino Gomes, meu camarada dos jornais e também membro do júri, parou e só dizia «oiçam lá isto, oiçam lá isto!».
Calámo-nos todos enquanto ele nos mostrava uma página de um caderno, só com uma frase escrita.
E leu:
«O 25 de Abril foi o dia em que o meu pai deixou de bater na minha mãe!»
Claro que foi esse miúdo que ganhou.
E, até hoje, ainda não encontrei melhor definição
Viva a Liberdade.
Bjs