Queridas Filhas,
Apropósito da celebração de meio século de democracia em Portugal, vale a pena também avaliar quais os pontos fracos desta. Durante toda a minha formação partilhei da mentalidade liberal ocidental. Acreditei que os debates ideológicos tinham acabado com a queda do Muro de Berlim e o mundo inevitavelmente evoluiria para democracias com economias de mercado. Quem não o fizesse teria economias pobres e sociedades oprimidas. Esta opinião julgo que ainda é largamente maioritária nos países ocidentais. Nas elites destes é quase dominante, com proponentes de visões alternativas ridicularizados como pouco inteligentes e retrógrados.
Mas a minha formação espiritual também me ensinou a ser humilde, e a não fazer julgamentos antes de verificar os fatos. E quando vim estudar para os USA há 20 anos, comecei a contactar com outras culturas e ideologias que acreditavam que iriam suplantar o Ocidente. Os mais convincentes na altura vinham de um pequeno país: Singapura. Mas os restantes tigres asiáticos prometiam que estavam a seguir o mesmo caminho, com a chegada da China no final.
Os ocidentais consolavam-se dizendo que estas economias estavam aos poucos e poucos a alinharem-se com os valores e práticas das democracias ocidentais. E a China, já estava de fato a seguir uma economia de mercado e com a prosperidade os chineses exigiriam a democracia.
Passados 20 anos, isso não aconteceu. E estas certezas estão a esbater-se. A China vem há bastantes anos a reduzir as liberdades cívicas dos seus cidadãos e a aumentar o poder do partido comunista chinês sobre a economia e sociedades chinesas. Os tigres asiáticos sentem que não se podem alinhar com o Ocidente para não hostilizar a China e procuram uma terceira via não alinhada.
Segundo o paradigma ocidental, isso deveria levar a quedas no crescimento económico e a maiores distúrbios sociais. Mas por enquanto, isso não se observa. E aos olhos orientais o contrário está a acontecer. O Ocidente perde peso económico e as sociedades mostram-se cada vez mais polarizadas.
Um caso ilustrativo e central é o da transição energética. Na Europa cortam-se estradas, atacam-se políticos para defender o ambiente. E muito dinheiro está a ser gasto nesse grande projeto com impacto no aumento da inflação (isso daria outra carta).
Mas na realidade, a construção de veículos elétricos, baterias, equipamentos solares e hidráulicos requer o uso de grandes quantidades de minérios que não sendo extraídos na China, aí são processados. De acordo com a Agência Internacional de Energia a China tem quota mundial dominante no refinamento de Grafite (100%), minérios raros (90%), cobalto (74%) e lítio (65%). Pelo que tal como John D. Rockefeller controlou o mercado de Petróleo através do controlo de 80% da sua refinação (mas não extração que estava fragmentada) há mais de um século, também a China investiu estrategicamente na construção da escala e eficiência na transformação dos minérios que são necessários para o mundo reduzir as emissões de carbono.
E a questão fica: se as democracias são superiores, como é possível uma autocracia como a China pensar a largo prazo há umas décadas e posicionar-se de forma tão estratégica para o futuro? Serão os ciclos curtos eleitorais das democracias um obstáculo grande a projetos estratégicos? Será possível ultrapassar esses obstáculos? Penso que esse debate vai-se dar no combate ideológico e económico das próximas décadas.