Identidade de género. A guerra cultural tem idade mínima?

Terá alguém aos 16 anos de idade maturidade suficiente para tomar uma decisão tão séria quanto a mudança de género? Seis países europeus acham que sim.

Os temas da identidade e da mudança de género têm estado no centro do debate a nível nacional e internacional nos últimos tempos. Trata-se de um debate que divide e polariza, sendo um dos focos principais da agora chamada guerra cultural, já que vem desafiar conceções biológicas e sociais tradicionalmente estabelecidas.

Com base nos princípios da liberdade, cada indivíduo deve ser livre de tomar as suas próprias decisões, sendo estas tomadas a partir de um processo de ponderação e consciência, nunca colocando em causa a liberdade do próximo. Mas terá alguém de dezasseis anos de idade – que está impedido de votar, consumir álcool e tabaco, por exemplo – maturidade suficiente para, mesmo que com limitações, tomar a decisão de mudar de género? E que implicações físicas e psicológicas terá tal decisão?

A Heritage Foundation, num estudo levado a cabo por Jay P. Greene, retrata a importância da decisão parental: “Esta investigação vem juntar-se à sabedoria bem estabelecida de que as crianças estão melhor se não lhes for permitido tomar decisões importantes na vida sem o envolvimento e a autorização dos pais. De um modo geral, os pais estão mais bem posicionados do que qualquer outra pessoa, incluindo os próprios filhos, para compreender as necessidades dos filhos ao tomar decisões importantes”.

O caso sueco No passado dia 17, o parlamento da Suécia aprovou uma lei que reduz de 18 para 16 anos a idade necessária para que as pessoas possam mudar legalmente de género, como noticiado pela Euronews. O resultado foi contundente, com 234 deputados a votar a favor e apenas 91 contra a medida.

John Hultberg, deputado do Partido Moderado, acredita que se trata de uma “reforma” e não de uma “revolução”. Já Carita Boulwen, dos democratas-cristãos, considerou tratar-se de “uma proposta repreensível, que corre o risco de ter consequências imprevistas e graves”.

A Suécia junta-se assim a um leque de outros cinco países europeus – Portugal, Espanha, Dinamarca, Noruega e Finlândia – que dispõem de legislação semelhante.

Até à aprovação da lei, os menores necessitavam de um diagnóstico de disforia de género, que, segundo profissionais do setor, se trata de um sofrimento psicológico relacionado a uma incongruência entre a identidade de género de uma pessoa e o sexo que lhe fora atribuído ao nascimento. A partir de agora, precisarão da aprovação de um médico, de um tutor e do Conselho Nacional de Saúde e Bem-Estar, avançou também a Euronews.

Em Portugal este debate tem já cerca de uma década, tendo até o Bloco de Esquerda, em 2017, apresentado a proposta que previa que os menores de idade, a partir dos 16 anos, tivessem o direito à autodeterminação de género, podendo até avançar com processos judiciais contra os encarregados de educação, no caso destes últimos não estarem de acordo.

Desde 2018, cerca de duas centenas de menores apresentaram uma requisição de mudança de género e de nome no registo civil, segundo dados do Ministério da Justiça apresentados pelo Público em dezembro do ano passado.

A identidade neerlandesa Os Países Baixos estão no centro deste debate, principalmente desde 2018 – data do The Dutch Protocol. Este termo polémico é utilizado para fazer referência à abordagem geral do uso de hormonas bloqueadoras de puberdade e cirurgias para combater a disforia de género, processo que foi liderado por uma equipa clínica deste país.

Mas foi no ano passado que o debate sobre a identidade e mudança de género – principalmente por parte de jovens – se tornou um assunto de grande abrangência na comunidade médica e científica do país, após a publicação de um artigo numa revista médica neerlandesa de renome, de um artigo legal e ainda de um documentário alusivo ao tema.

Um resumo apresentado pela Society for Evidence Based Gender Medicine (SEGM), uma organização sem fins lucrativos que já colaborou com centenas de investigadores e especialistas em mais de vinte países, refere que os Países Baixos são tanto o berço quanto o centro internacional de especialização na prática de transição de género de menores e que um número crescente de especialistas se mostra preocupado com o facto de não se ter estudado devidamente os efeitos adversos dos tratamentos que bloqueiam a puberdade, que fazem parte do Dutch Protocol.

É também referido que há várias críticas dirigidas ao Protocolo – principalmente porque tomou um rumo diferente do que fora planeado sem justificação aparente – e que vários especialistas legais e éticos acreditam que o fio condutor do projeto não apresenta padrões de cuidados, uma vez que não se baseia numa revisão sistemática de evidências.

“Um número crescente de vozes refere que a realização de intervenções médicas e cirúrgicas altamente invasivas como primeira e principal resposta à incongruência de género na juventude ignora as conclusões de recentes revisões sistemáticas de evidências”, pode ainda ler-se no website da SEGM. “Estas revisões não conseguiram encontrar provas credíveis de benefícios psicológicos. Tendo em conta os danos conhecidos (incluindo, entre outros, a infertilidade e a esterilidade) e as muitas outras incógnitas, os críticos questionam se os Países Baixos deveriam considerar a possibilidade de alinhar as suas políticas e práticas com as da Suécia, Inglaterra e Finlândia. Isto implicaria reservar as intervenções médicas para a disforia de género de início na infância e administrá-las em contextos estritamente de investigação, enquanto que a disforia de género de início na adolescência seria tratada com apoio psicológico”.

Os investigadores Jilles Smids e Patrik Vankrunkelsven, num artigo publicado na Revista de Medicina Neerlandesa e citados pela SEGM, constatam ainda que “vários estudos demonstraram que, durante a inibição da puberdade, se regista uma diminuição dos problemas emocionais, da depressão e do suicídio, bem como uma melhoria do funcionamento global, embora também existam estudos em que não se verificaram alterações. Durante o tratamento médico, a orientação é feita por um psicólogo, o que também pode ter contribuído para os efeitos positivos registados”.

Também em 2020, a ministra da Educação e Cultura dos Países Baixos, Ingrid van Engelshoven, anunciou ao parlamento neerlandês que o bilhete de identidade iria deixar de conter a identificação de sexo dos cidadãos em 2024 ou 2025. A justificação foi a de dar aos neerlandeses liberdade para “desenvolver a sua própria identidade”.

Segundo uma notícia do Observador à data, a Organização para a Diversidade Sexual, que louvou a medida, já tinha referido no ano anterior que 4% – sim, 680 mil pessoas num universo de cerca de 17 milhões – não estaria confortável com a referência ao género no do documento de identificação oficial. A medida ainda não foi implementada.

O estudo de Hillary Cass Num assunto em que grande parte das vezes a ideologia se sobrepõe às evidências médicas, é importante abordar esta problemática com base na ciência – e foi isso que o estudo de Hillary Cass, uma pediatra britânica, demonstrou.

“Espero que as crianças e jovens beneficiem de acesso a um modelo holístico e multifacetado de cuidados, juntamente com uma infraestrutura de investigação que lhes forneça informações baseadas em provas mais sólidas para tomar decisões que podem ter implicações a longo prazo”, concluiu Cass nas considerações finais da sua vasta e importante investigação.