A última semana da política espanhola foi marcada por algo insólito e sem precedentes: o chefe do Governo, o socialista Pedro Sánchez, emitiu uma «carta à cidadania», onde comunicou aos espanhóis que necessitava de «parar e refletir» para apurar se deveria «continuar à frente do Governo ou renunciar a esta alta honra».
Numa carta onde usou oito vezes a expressão «ultradireita», Sánchez alega ser vítima de «assédio e derrube por terra, mar e ar» que tem como objetivo fazê-lo «desfalecer politica e pessoalmente, atacando a minha esposa».
O comunicado foi emitido no dia 24 do mês passado, tendo a decisão chegado cinco dias depois. Apanhando pouca gente de surpresa, Pedro Sánchez optou por não se demitir, alegando que volta deste curtíssimo período sabático mais forte.
Mas o que se segue para o regime democrático espanhol, fundado e consolidado nos últimos anos da década de 70 e nos primeiros de 80, onde um socialista, Felipe González, desempenhou um papel fundamental? Há quem acredite que tenha chegado ao seu fim na segunda-feira.
O líder do Partido Popular, Alberto Feijóo, acusa Sánchez de estar a realizar uma «estratégia judicial e eleitoral», submetendo os espanhóis «à vergonha internacional.» «O mais perigoso: não aceita a discrepância. Um país à sua medida à custa de menos democracia.», acrescentou o líder da oposição.
Já Isabel Ayuso, Presidente da Comunidade Autónoma de Madrid e uma das principais vozes do PP, foi mais longe, prevendo, logo após a publicação da carta, que «Sánchez encerrou-se cinco dias para ver como triturar os juízes, a oposição e a imprensa independente».
O caso de Begoña
No texto da edição de 22 de março, neste mesmo plano, foi referido que o Governo de Sánchez se via – para além de outras coisas – a braços com uma polémica que envolvia Begoña Gómez, a esposa do Presidente do Governo. Foi exatamente esse assunto que colocou a atualidade política espanhola numa situação (ainda mais) delicada.
A companheira de Sánchez é alvo de investigação por alegados casos de corrupção e tráfico de influências, suspeitando-se que angariaria fundos públicos para determinadas empresas.
O sindicato Manos Limpias, vincadamente de direita, avançou com um processo, baseando-se em várias notícias. O fundador, Míguel Bernad, diz, citado pela RTVE, que se as informações «são certas, entendemos que a causa judicial deve prosseguir». A bola está agora do lado do juiz.
As manifestações de apoio
Poucas horas após o comunicado, os apoiantes de Sánchez saíram à rua para demonstrar a sua solidariedade para com o primeiro-ministro. Numa emotiva manifestação na Rua Ferraz – sede do Partido Socialista Obreiro Espanhol –, apareceu junto ao povo, de forma galvanizada e comovente, María Jesus Montero – ministra das Finanças e da Função Pública. Mas tem sido outro membro do Governo, Óscar Puente, a demonstrar mais admiração pelo líder socialista.
O ministro dos Transportes e da Mobilidade Sustentável afirmou que «Pedro Sánchez ‘es el puto amo’ porque o respeitam». Segundo Puente, o líder do Governo tem também outra qualidade que vale a pena realçar: «fala inglês».
Ainda assim, e apesar das atitudes amigáveis dos colegas de Governo, Sánchez parece estar a perder cada vez mais o respaldo popular, algo verificável pelas contínuas manifestações após a formação do segundo Governo Frankenstein e consequente anúncio da lei da amnistia, que mobilizaram milhões por todo o país. Também as suas aparições públicas, inclusive a mais recente, não suportam os elogios de Óscar Puente.
O assédio
Sánchez acusa a oposição de «assédio» por ter pedido esclarecimentos sobre a atividade da sua esposa. Não deixa de ser surpreendente, já que os ataques à vida pessoal de Isabel Ayuso e do seu círculo próximo têm sido uma das principais estratégias do PSOE.
A presidente da região madrilena já viu investigações, por vezes realizadas através do aparelho estatal, aos pais – mesmo tendo já o pai falecido –, ao irmão, ao companheiro e até ao ex-namorado. Na terça-feira, Ayuso dirigiu-se à assembleia de Madrid: «Retorceram o meu passado, o meu presente e o meu entorno familiar. […] O PSOE não sabe sair da lama porque vive nela». Ainda assim, a popular não necessitou de refletir acerca da sua continuidade.
A propósito deste caso, é de relembrar uma declaração do jornalista espanhol Mikel Iturriaga, que afirmou, na altura em que Ayuso se sentiu vítima de perseguição por parte do Governo, que a presidente da Comunidade madrilenha seguia uma estratégia trumpista: «1.º de Trumpismo: fazer crer aos teus seguidores que qualquer processo judicial contra ti ou contra o teu círculo é parte de uma conspiração dos teus adversários». Perante a situação atual de Sánchez, Iturriaga optou pelo silêncio.
Guerra à imprensa
Na primeira entrevista após a decisão de continuar, dada à RTVE, o presidente do Governo de Espanha anunciou a renovação do Conselho Geral do Poder Judicial e propôs-se a lutar contra a «desinformação» da imprensa.
No editorial do El Mundo – um dos jornais espanhóis de referência – de segunda-feira, lê-se: «O nosso sistema demorará a recuperar da erosão política, jornalística e social que Pedro Sánchez provocou com o impulso sentimental que lançou em Espanha».
O líder socialista, que acusou alguns jornais e a oposição de mentir, usou ele próprio a mentira para realizar tal declaração, afirmando que Feijóo queria que Begoña Gómez deixasse de trabalhar e se mantivesse em casa. O líder do PP não referiu isso em momento algum, apenas pretendia uma investigação.
E o primeiro caso que fez soar os alarmes da imprensa espanhola independente foi o de Bieito Rubido, diretor do jornal online El Debate. Rubido previu que todo este imbróglio poderá acabar de forma «trágica», e a conta oficial do PSOE no X rapidamente exigiu um pedido de desculpas por parte do jornalista. Um jornalista que cometeu o delito de expressar a sua opinião e prognóstico.
O diretor do jornal já reagiu, e foi ao ataque: «O objetivo de Sánchez é calar a boca dos jornalistas. […] Não quer que lhe digam nada e até distorce as palavras».
O futuro de Espanha é incerto, mas parece indubitável que o legado de Pedro Sánchez deixará marcas profundas na sociedade e na política espanholas.