Para começar, e para quem não está familiarizado com a organização, conte-nos em que consiste o KAICIID e quais são os seus objetivos principais.
Sim, claro. Obrigado também pela oportunidade de poder falar sobre o trabalho do KAICIID. Posso começar por explicar um pouco a visão do KAICIID, que é a de um mundo em paz onde existe respeito, harmonia e diálogo entre pessoas de todas as fés e culturas de todo o mundo e, para chegar a essa visão, dizemos que a missão da organização é desenvolver as capacidades dos indivíduos e das instituições no diálogo intercultural e inter-religioso, para que possam utilizar o diálogo como uma ferramenta para enfrentar os desafios que existem atualmente como aldeia global ou como humanidade em geral, e também para reunir os actores religiosos e culturais com os decisores políticos, a fim de conceber uma política mais inclusiva que seja, por conseguinte, mais sustentável e que tenha em conta as necessidades de todas as fés e comunidades culturais.
E mudaram a sede – que era em Viena – há cerca de dois anos para Portugal. Porquê Lisboa?
Portugal, no geral, tem um historial de abertura e é um país acolhedor. Esta foi uma decisão tomada por todos os membros do nosso conselho, que é atualmente composto pela Áustria, Espanha e Arábia Saudita, e temos também a Santa Sé como observador fundador. A decisão foi tomada, naturalmente, em consulta com o governo de Portugal e foi considerado um local muito adequado para a nossa nova sede.
Pode ler-se que o mote para o congresso, que será entre 14 e 16 de maio, é «O Diálogo como força transformadora: construir alianças para a Paz num mundo em rápida mudança». O que podemos esperar do encontro?
Estamos a trazer para Lisboa os nossos 12 anos de experiência no desenvolvimento de plataformas de diálogo intercultural e inter-religioso e também a reunir partes interessadas influentes, tanto de instituições religiosas como não religiosas, para que se juntem e reconheçam o poder transformador do diálogo para enfrentar estes desafios globais em particular. Vamos concentrar-nos em três áreas temáticas: construção da paz, cidades inclusivas e proteção ambiental ou prevenção das alterações climáticas. Estes são os três temas principais e esperamos galvanizar todos estes actores para que possam trabalhar através do diálogo e em parceria para abordar estas três áreas principais.
Temos uma sociedade polarizada e fraturada, em que existe pouco espaço para o debate e para o diálogo profundo. Mitigar este fosso – que aumenta a cada dia – é um dos objetivos da organização?
Sim, está correto. E já referi que o diálogo é um instrumento fundamental para a resolução de qualquer questão específica e trabalhamos em muitas áreas, como a proteção de locais sagrados, a promoção da liberdade de religião e crença, a resolução de conflitos, a proteção do ambiente e todas estas são áreas em que o diálogo pode servir como instrumento para encontrar soluções para qualquer um destes desafios específicos. Isto é feito com determinados princípios de imparcialidade, neutralidade e respeito pela dignidade humana.
E acredita que a falta de diálogo – que acabou de descrever – foi o principal propulsor dos conflitos a que hoje assistimos?
Penso que, em qualquer situação em que se crie um impasse que conduza potencialmente a um surgimento de violência, se pode argumentar que é porque houve falta de diálogo para começar e uma das principais coisas que o KAICIID propõe é a prevenção da instrumentalização da religião para justificar a violência, por isso estamos muito concentrados no diálogo também como uma ferramenta preventiva para não chegar à violência e ao conflito.
Sim, e os tópicos do diálogo e da diplomacia podem ser um pouco mais complexos do que gostaríamos. Acredita que é possível existir diálogo mesmo com alguém cujo principal objetivo é destruir-nos? Mesmo assim crê que é possível?
Claro, penso que, de um modo geral, é necessário defender um processo de diálogo o mais inclusivo possível, para que todas as partes interessadas possam trazer as suas necessidades e preocupações para a mesa. É, evidentemente, um equilíbrio delicado saber quando se deve dialogar com certos atores nefastos e como garantir que as condições para o diálogo são cumpridas e que o processo irá efetivamente avançar numa direção positiva. Este é um equilíbrio que é feito caso a caso.
Referia-me, claro, do conflito no Médio Oriente. Como se pode dialogar ou chegar a um acordo perante esta situação?
O conflito em si não se limita ao Médio Oriente, mas também ao que se tem passado aqui, na nossa própria vizinhança, na Europa. Todos estes são exemplos de processos de diálogo falhados e de conflitos ainda mais evidentes. A necessidade de uma organização como a KAICIID existir, com um mandato exclusivamente dedicado ao diálogo intercultural e inter-religioso, é a de poder implementar o seu trabalho de forma eficaz.
E vê um projeto de paz em breve tanto na Ucrânia quanto no Médio Oriente?
Bem, só podemos esperar uma resolução pacífica e o cessar da violência. E não apenas estes conflitos em particular, mas todos os conflitos que estão a ocorrer em todo o mundo neste momento, e nós encorajaríamos vivamente a resolução a incluir uma forte componente dialógica como o passo principal e fundamental para começar a avançar para uma resolução pacífica.
Em 2019, o Papa deslocou-se pela primeira vez à Península Arábica, mais precisamente aos Emirados Árabes Unidos, onde assinou uma declaração histórica com o Grande Mmam Al-Azhar. Foi um passo simbólico e importante para o diálogo inter religioso, certamente. Acredita que é possível conseguir a liberdade religiosa absoluta na Península Arábica?
Penso que a liberdade religiosa é, em si mesma, uma condição fundamental que assegura a sustentabilidade a longo prazo das comunidades. Este é um direito que nos assiste. Defendemo-la e promovemo-la no KAICIID, e está patente em muitas das nossas intervenções programáticas. O Papa e este evento são certamente encorajadores. Penso que o Papa Francisco, como sabem, o Vaticano, ou a Santa Sé, é um dos nossos observadores fundadores. Tem feito um trabalho extraordinário ao longo do seu mandato, não só neste caso em particular, mas também no Vaticano e na República Centro-Africana. E o Papa fez uma visita durante a sua viagem por África, creio que no final de 2015, quando, em Bangui, a capital da República Centro-Africana, insistiu em rezar com o Imã Tijani, que é o Grande Imã da mesquita central no bairro PK5 da capital. A maioria dos muçulmanos que viviam nesse bairro não saíram de lá durante mais de três anos devido à falta de liberdade de movimento e ao medo de serem mortos pelo seus vizinhos maioritariamente cristãos. Para contextualizar, pouco depois do início da crise de 2013, e contra o conselho do Vaticano, da operação MINUSCA das Nações Unidas, da Missão de Estabilização no país e dos militares franceses que também estavam a garantir grande parte da segurança na capital, o Papa insistiu que queria ir rezar com o Imã Tijani. E, espontaneamente, depois de ter conseguido fazer essa oração conjunta, a população muçulmana seguiu o Papa até ao estádio para ser recebida pela população maioritariamente cristã. E esta é uma história, que saiu na imprensa na altura, mas que também me foi contada por um capacete azul do Ruanda. E ele tinha lágrimas a correr pela cara quando me estava a contar esta história porque, na sua mente, testemunhou um verdadeiro milagre. Porque isso não teria sido possível se o Papa não tivesse intervindo nesse caso específico. E estes são muçulmanos, certo? Nem sequer estamos a falar de cristãos. Por isso, este caso mostra o poder e a influência que os actores religiosos têm na prestação de ajuda e na intervenção em cenários de conflito.
E mesmo com estes esforços visíveis por parte do Vaticano, ao encorajar o diálogo e a fraternidade entre religiões, crê que existe a mesma vontade por parte de outras religiões, mesmo das mais fundamentalistas?
Tendo em conta que, atualmente, 85% da população mundial se identifica com algum tipo de paradigma religioso ou espiritual, é evidente que a influência dos líderes religiosos tem um efeito galvanizador nas suas comunidades religiosas específicas. Haverá sempre mais, digamos, interpretações rígidas do que é o dogma religioso de acordo com essa tradição religiosa específica. A preocupação é que as pontes de diálogo sejam estabelecidas e que a comunicação seja aberta e exista entre qualquer fação específica ou comunidade de fé. A noção é que este processo de diálogo aproximará ambas as partes e criará uma melhor compreensão de quem é o outro, construindo assim uma coesão social mais forte.
Sim. E porque é que a Igreja Católica não tem uma igreja na Árabia Saudita, por exemplo?
Não estou a par das razões pelas quais isso acontece, pelo que não me sentiria à vontade para comentar ou aventurar-me sobre a razão por detrás disso.
Ok. E o processo sinodal da Igreja Católica convida mesmo quem não “obedece” ao Vaticano. Prevê que o mundo islâmico posso vir, um dia, a convidar católicos para os seus encontros?
Bem, creio que estes convites já existem hoje, verdade? O que referiu, por exemplo, agora com o Papa a assinar este importante documento. Portanto, acredito que estes encontros já estão a acontecer. E, pessoalmente, estou otimista quanto à sua continuação.
E acha que é possível, através do diálogo religioso, conseguir a união entre sunitas e xiitas?
É uma esperança que se tem, certo?
Mas acredita que é possível?
Penso que qualquer processo de diálogo tem potencial para produzir resultados.
Sim, mas acha que há essa disposição?
Mais uma vez, não me cabe a mim comentar se há ou não, sabe…
Estamos preocupados aqui na Europa, e nos Estados Unidos, claro, que se esteja a caminhar para uma Terceira Guerra Mundial, que também está a ser provocada por motivos religiosos. Assistimos agora a uma cruzada inversa?
Está a considerar que na Ucrânia há uma guerra religiosa ou no Médio Oriente?
No geral…
Penso que é fundamental ter em conta que, se estudarmos a fundo a maior parte dos conflitos, verificamos que a dinâmica inter-religiosa é fabricada a posteriori. Portanto, na maioria dos casos, há uma motivação política por detrás do conflito. E depois a religião é usada como pretexto para justificar esse conflito. Posso mencionar novamente a República Centro-Africana, por exemplo, onde temos estado a trabalhar. Houve um golpe de Estado em 2013 e a maior parte das milícias que chegaram a Salekha vieram de países do norte, maioritariamente muçulmanos: Sudão, Chade, Sudão do Sul. E não houve um conflito efetivo. Havia uma ideologia inter-religiosa, uma ideologia islamista por detrás do golpe, certo? Mas como a maioria da população é cristã, criaram as suas próprias ligas de auto-defesa, as anti-balaka, maioritariamente cristãs. E depois tornou-se um conflito inter-religioso. Antes disso, o casamento inter-religioso na África Central era muito comum. Alguns muçulmanos casavam com cristãos e vice-versa. E foi apenas o golpe político que o manipulou, e o nome da religião ou o sentimento religioso foi então utilizado para justificar a violência.
Neste momento, acha que no Médio Oriente a vertente política tem mais peso que a religiosa?
Penso que se trata de um cenário muito complexo. Penso que se trata de uma combinação de ambos os factores. Penso que, sim, a identidade religiosa também desempenha um papel.
Falando agora dos refugiados palestinianos que resultaram do conflito. Acredita que foi por motivação religiosa que alguns países asiáticos não se disponibilizaram para acolher estes refugiados?
Acho que não me cabe a mim comentar isso. Não sou um particularista.
Voltando ao KAICIID. Sabemos que o ex-Presidente francês, François Hollande, e o ex-primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, estarão presentes. Quão importante são estas presenças para o KAICIID e para a sua visibilidade?
Claro. Bem, como disse antes, a ideia é reunir actores influentes e de alto nível, tanto seculares como religiosos, porque uma das principais coisas que queremos fazer na KAICIID é ligar os decisores políticos aos actores religiosos, e a ideia é que, devido ao acesso e à influência que os líderes religiosos têm, a implementação de qualquer política específica será muito mais bem sucedida com a sua ajuda. Por isso, queremos tirar partido do seu envolvimento. Mas não é só isso, antes da implementação propriamente dita, quando olhamos para a conceção em si, acreditamos que é benéfico envolver os actores religiosos desde o início do processo, a fim de criar uma política mais inclusiva e sustentável, porque estamos a ter em conta as necessidades, as necessidades e o pensamento desses actores religiosos, certo? E há sempre alguma resistência, dependendo do contexto. Por exemplo, no contexto europeu em que nos encontramos, por se tratar de nações seculares com uma divisão clara entre a Igreja e o Estado, pode haver alguma resistência porque sentem que estão a voltar atrás no tempo em algo que já estava claramente separado, houve uma evolução que separou claramente essas instituições. Mas a ideia é que pode haver uma intenção de distorcer o processo ao envolver líderes religiosos, mas o objetivo não é de todo esse. É simplesmente tê-los em conta para que a política seja mais inclusiva e mais sustentável a longo prazo.
Para finalizar, disse no iníco que o encontro se focaria em três tópicos principais.
Sim.
Pode ir mais a fundo nesses temas em particular?
Claro. Estamos a olhar para a construção da paz. É algo que estamos a fazer em vários dos nossos programas, particularmente no contexto africano, onde trabalhamos na Nigéria. Na Nigéria, a RCA foi um ponto forte. E, mais uma vez, os actores religiosos, devido à sua confiança e acesso, têm um papel especial a desempenhar quando se trata de mediar conflitos. Quero dizer, o contexto africano, desde a África do Sul à Libéria, ao Quénia, ao Ruanda. Em muitas destas ocasiões, os líderes religiosos foram fundamentais no processo de justiça transicional. Há, portanto, uma espécie de aspeto de construção da paz que está intimamente ligado a isso. Depois, no que se refere à ecologia sagrada, ou estamos a chamar-lhe ecologia sagrada, mas está sobretudo centrada na proteção ambiental. Mais uma vez, os líderes religiosos têm muito a dizer em termos de gestão de recursos e esforços de conservação.
E com o desenvolvimento de cidades inclusivas, a ideia, só para voltar um pouco atrás, é que todos estes temas estão interligados, certo? Assim, por exemplo, a degradação ambiental exacerba os conflitos baseados nos recursos, o que leva à migração das pessoas do campo para a cidade, o que causa mais problemas na cidade e, por conseguinte, a necessidade de conceber cidades inclusivas que tenham em conta as necessidades e as motivações dos diferentes membros da comunidade que fazem parte dessas cidades. Assim, a ideia é que estamos a olhar para um problema do sistema nesse sentido, porque está tudo muito interligado. E devido a essa interligação, precisamos de diálogo como abordagem fundamental para nos envolvermos, para nos certificarmos de que todas as partes interessadas estão envolvidas.