Gato escondido…

A intenção do Manifesto sobre a Justiça, assinado por 50 ‘personalidades’ respeitáveis, é claro: colocar a Justiça na dependência do poder político, em claríssima violação da separação de poderes.

O Manifesto sobre a Justiça, divulgado na semana passada e assinado por 50 ‘personalidades’ portuguesas, merece reflexão. Mais que não fosse, por haver entre elas muitas figuras respeitáveis. Mas, para lá disso, é óbvio que há problemas graves na Justiça: a morosidade, os acórdãos em sentidos opostos, os abusos (ou excessos) de autoridade, a violação do segredo de Justiça, a permissividade em relação a manobras dilatórias.

A violação do segredo de Justiça é um problema antigo – e já escrevi abundantemente sobre ele. Tem destruído a vida de cidadãos que, antes de irem a tribunal, são julgados e condenados no espaço mediático – e esta condenação não tem recurso. Por isso lhes chamei os «novos julgamentos populares», termo que é repescado neste Manifesto.

Trata-se, porém, de uma questão insolúvel. A única solução seria a condenação exemplar dos órgãos de informação e dos jornalistas que violassem o dito segredo – mas isso choca de frente com a liberdade de informação. Sei do que falo, porque fui durante três décadas diretor de jornais e julgado mais de cem vezes.

Mas vamos diretamente ao Manifesto. Ele surge na sequência do processo Influencer e da demissão do Governo, o que não é indiferente. Se fosse efetuado noutra circunstância – por exemplo, o acórdão do juiz Ivo Rosa que destruiu a acusação a José Sócrates, provocando justificado alarme social –, teria outro significado. Assim, torna-se óbvio que a motivação dos subscritores foi a queda do Executivo e a situação de António Costa. E isto explica que uma boa percentagem seja da área socialista.

Há outro problema. Os subscritores são na sua esmagadora maioria políticos, filiados em partidos, que em vários casos foram membros do Governo. E alguns até estiveram envolvidos em processos mediáticos complicados, casos de Ferro Rodrigues ou Leonor Beleza, o que pode indiciar alguma tentação revanchista. Faltam figuras fora da política, da sociedade civil, como engenheiros, médicos, arquitetos, professores, etc.

E assim sendo, este Manifesto configura em boa parte uma guerra entre os políticos e a Justiça.

Um dos subscritores do documento é Rui Rio, que tem sido um dos cavaleiros desta cruzada e que lhe prestou agora um péssimo serviço, ao dizer que «a Justiça tem de prestar contas, pois é uma área como qualquer outra – como a saúde ou a educação».

Ora, isso denuncia a sua visão do problema. A saúde e a educação são áreas que estão sob a tutela do Governo, cuja atuação é decidida pelo Governo. Rio gostaria, pois, que a Justiça fosse igual: que estivesse debaixo do controlo do poder político. Ora, por definição, a Justiça é um poder independente. Não por acaso, Pedro Nuno Santos agarrou nesta ideia, dizendo que, «como qualquer outra área, a Justiça tem de estar sob o escrutínio democrático».

Mas como e de quem? O PGR passaria a ser eleito? Os atos da Justiça passariam a ser votados? Como é que se faz o ‘escrutínio democrático da Justiça’?

A intenção é clara: é pôr a Justiça debaixo do controlo do Parlamento. Note-se que este Manifesto se segue a uma entrevista do presidente da Assembleia da República, Aguiar-Branco, em que este defendia a necessidade de a PGR, Lucília Gago, ir ao Parlamento dar explicações. E, isto mesmo, se diz num parágrafo do Manifesto:

«Reforçar os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e implementar mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares competentes».

Ou seja, a Justiça teria de se justificar ‘periodicamente’ perante o Parlamento. Ora, o que seria isto senão colocá-la na dependência do poder político, em claríssima violação da separação de poderes?

Pelo que fica escrito, o Manifesto, embora subscrito por muitas figuras respeitáveis, é ‘gato escondido com o rabo de fora’.

Há muita coisa na Justiça que está mal. Mas misturá-la com a política e sujeitá-la ao juízo dos políticos seria um gigantesco tiro no pé e uma enorme trapalhada. Bem basta a confusão em que a política já está. Não queiramos complicá-la ainda mais…