Habitação em Portugal – Mais regulação, menos liberalização!

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Nas últimas décadas assistimos à aprovação e à implementação de um corpo legislativo que pretende levar a efeito uma liberalização do Regime de Arrendamento Urbano em Portugal, com uma acentuada desproteção dos direitos dos inquilinos e respetiva desregulamentação do mercado de arrendamento urbano que conduziu a uma exponencial especulação das rendas e das casas.

Este processo teve início com o aparecimento do RAU pelo DL n.321-B/90, de 15 de outubro, depois com as alterações por via do NRAU (Lei n. 6/2006, de 27 de fevereiro) que propõe uma atualização das rendas de forma progressiva e faseada, mas é com o Memorando da Troika que assistimos a uma liberalização bruta e desumana do Regime de Arrendamento Urbano em Portugal.

De todas as alterações legislativas destaco duas pelo seu impacto negativo na vida das famílias portuguesas. A chamada “Lei Cristas ou dos Despejos”, Lei n. 31/2012, de 14 de Agosto no tempo do XIX Governo Constitucional de Passos Coelho e Paulo Portas, que provocou profundas alterações nas políticas de arrendamento, conduziu a uma excessiva liberalização do mercado de arrendamento urbano e consequente desproteção dos inquilinos, com milhares de arrendatários a serem pressionados para abandonarem a sua habitação e cujo resultado levou ao aumento exponencial de despejos forçados, muitos quais com recurso a violência e intimidação contra os arrendatários, na sua maioria idosos e em situação de solidão e fragilidade física, económica e social.

É durante o XVIII Governo Constitucional (2009-2011) do Primeiro Ministro José Sócrates que Portugal se vê obrigado a solicitar ajuda externa ao FMI, CE e ao BCE por causa da grave crise financeira.  No dia 17 de maio de 2011 o Governo de Portugal, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central (a chamada Troika), assinam o Memorando de entendimento sobre as condicionantes de Política Económica, cujos exigências vão ser plasmadas na chamada Lei Cristas. A partir deste momento assistisse a uma explosão de despejos, de famílias que perdem as suas habitações, uma quantidade enorme de pessoas que são obrigadas a recorrer a familiares, a instituições de solidariedade, a procurar na auto-construção uma solução que lhes garanta um abrigo. O número de pessoas sem casa aumenta de forma assustadora, a quantidade de gente a dormir na rua é cada vez mais preocupante.

A crise financeira nos EUA com origem na crise do subprime rapidamente se internacionalizou e bateu-nos à porta, dando-nos a conhecer a fragilidade dos créditos imobiliários de alto risco. Que vieram a ditar a crise na banca portuguesa com a falência do BES e a assistência à banca portuguesa que se encontrava numa situação de grande vulnerabilidade de capitais financeiros. A crise financeira bateu também à porta das famílias portuguesas, hipotecadas à banca via o crédito à habitação que depressa ditou a entrega de milhares de casas por incumprimento das mesmas.

Com saída de cena política do Governo da Troika e a entrada do Governo da “Geringonça” foi possível uma plataforma de entendimento a toda esquerda, com a criação de uma maioria parlamentar colaborativa que suspendeu muitas das medidas que vinham do Governo da Troika, com destaque para a “Lei Cristas”.

Com o Governo da “Geringonça” foi possível um regresso à regulação e à proteção no direito à habitação, o fim dos despejos e do confisco das casas de família por incumprimento à banca, uma regulação do Alojamento Local.

Destaque para a Nova Geração de Políticas de Habitação (Resolução de Conselho de Ministros n. 50-A/2018, de 2 de maio), que se traduzia na passagem de uma política centrada na oferta pública de habitação para os mais carenciados para uma política orientada para o acesso universal a uma habitação adequada. A Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) recoloca a pessoa no centro das políticas da habitação, contrariando a visão do governo da Troika que deslocou a habitação como direito constitucional (Art.º 65. CRP76) para um valor de mercadoria determinado por especuladores e rentistas nacionais ou globais.

A NGPH aparece como uma espécie de primavera da habitação, consagrando o direito à cidade e à habitação, mas desde cedo que se começam a notar graves contradições na sua aplicação. A NGPH não rompe com os programas e as linhas de investimento público na reabilitação para o mercado, não quer proteger a habitação popular, o caso das “ilhas” da cidade do Porto que estavam a ser tomadas pelo AL, e muito menos apresenta uma política de solos públicos.  Por exemplo, o programa “Primeiro Direito: Programa de Apoio ao Direito a Habitação”, aprovado em maio de 2018 com uma alocação de cerca de 1700 milhões de euros até 2024 (dos quais 700 milhões a fundo perdido) para coordenar-se com a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), 2017-2023 foi um fracasso. Aliás, o Primeiro Direito prevê ou previa(!) o financiamento dos municípios para a requalificação de imóveis, aquisição de terras e construção de novas unidades em caso de insuficiência de habitações disponíveis.  Sem dúvida uma medida positiva, mas qual foi o seu alcance? Penso que muito reduzido perante a emergência da crise habitacional que se vive nas grandes cidades, com destaque para Lisboa e Porto.

As políticas públicas continuam reféns da reabilitação em função dos grandes emparcelamentos e programas urbanos que promovem grandes negócios imobiliários, em prejuízo do interesse público.

A promoção de uma Lei de Bases para a Habitação foi sem dúvida o grande momento das políticas socialistas com o apoio de toda a esquerda parlamentar. A sua aprovação em 13 de setembro de 2019, permite dar à habitação um novo enquadramento jurídico e social, rever diplomas e códigos, mas todo esse trabalho foi congelado e adiado pelos socialistas para outras primaveras. O governo que promoveu a Lei de Bases da Habitação foi o mesmo governo que optou pela sua não regulamentação. Em suma, o Governo socialista foi a mão esquerda no poder da direita neoliberal portuguesa.

Em relação às 30 propostas apresentadas pelo atual Governo da AD (PSD, CDS,PPM) no programa “Construir Portugal: Nova Estratégia para a Habitação”, de 10 de maio de 2024, constata-se que estamos perante uma recuperação das politicas da desregulação e liberalização do mercado de arrendamento urbano em oposição ao programa anterior que centrava as políticas de habitação como um direito universal. A maioria destas 30 “propostas” são do domínio da retórica e da fraseologia política, não apresentam nenhuma ideia, nenhuma ação, nenhum caminho. Contudo, as propostas números 9 (redução do IVA para as obras de reabilitação), 12 (Programa de Arrendamento Acessível), 13 (Revogação do Arrendamento Forçado), 14 (Revogação da Medida do Mais Habitação), 15 (Correção das distorções introduzidas ao Regime de Arrendamento Urbano nos últimos 8 anos), 22 (Alojamento Local, Revogação da CEAL), 26 ( Reformulação do Porta 65) traduzem o posicionamento ideológico e programático próprio de um governo neoliberal reacionário face ao direito à habitação consignado no Artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa.

Este posicionamento de retorno às políticas da desregulação, do deslocar e realojar são evidentes nas propostas 13, que reafirmam a revogação do arrendamento forçado numa clara defesa dos proprietários parasitas que fazem da especulação das rendas o seu modo de vida; na proposta 15, que propusesse corrigir as distorções introduzidas ao regime de arrendamento urbano nos últimos anos. Com esta medida pretendem devolver a flexibilidade e a confiança ao mercado de arrendamento urbano. Significa abandonar as políticas da regulação e da moralização das rendas, em benefício de um capitalismo selvagem que faz da habitação uma mercadoria fortemente especulativa. Estamos perante o regresso das políticas da vulnerabilidade social, da precariedade e da exclusão habitacional.

Antropólogo / Investigador CICS.NOVA_UM/LAHB