De Abu Dhabi

O deslumbramento do turista não o deve cegar quanto à natureza irreal de tudo o que o cerca.

  1. Hoje não vou falar de contas certas ou erradas (discussão irrelevante); nem das SCUT (se o utilizador não paga, paga o não utilizador); nem da imigração (onde o voluntarismo e boa vontade enchem o inferno); nem da radicalização nos campi universitários (que testa os limites da liberdade de expressão e da estupidez); nem de um parlamento moribundo, já dominado por um escatológico quanto-pior-melhor. Estou fora do país há 10 dias e preferi desligar. Vim ao Abu Dhabi em trabalho a que se seguiram férias.
  2. A cidade Abu Dhabi (AD), a capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU), é menos exuberante, artificial e cosmopolita que o Dubai, mas, ainda assim, irreal: numa ilha, outrora um deserto, erguem-se infraestruturas de primeira, serpenteadas por surpreendentes espaços verdes, com ruas limpíssimas e uma arquitetura arrojada, onde vejo combinadas as inspirações ocidental e arábica. (Destaco o Louvre, obra de Jean Nouvel, onde uma cúpula, cobrindo os vários edifícios do complexo, filtra a luz solar como se fosse uma canópia de palmeiras no oásis de Al Ain; ou a Casa da Família de Abraão, por David Adjaye, cujo desenho expurgado, muito belo e tremendamente simbólico de três templos da Família, torna ainda mais pungentes as suas desavenças intestinas.)
  3. O deslumbramento do turista não o deve cegar quanto à natureza irreal de tudo o que o cerca. Nada reflete esta irrealidade como a estrutura da população e do mercado de trabalho. Os EAU têm uma população de cerca de 10 milhões dos quais os cidadãos representam apenas 12%; os restantes residentes são expatriados, a maioria dos quais do sul da Ásia (a população indiana é próxima de 4 milhões), que não possuem qualquer perspetiva de conseguir, para si ou para os seus descendentes, a nacionalidade emirati. Os emiratis têm muitos direitos e privilégios que não estão disponíveis aos meros residentes, incluindo o direito de aceder a benefícios como apoio na habitação, cuidados de saúde e subsídios à educação, e, ainda, a tratamento preferencial em empregos públicos. Os nacionais são fáceis de reconhecer por flanarem nas suas túnicas brancas, imaculadas e engomadas, e lenço branco preso por um cordão preto na cabeça. É inescapável a sensação, porventura exagerada, que estamos num país em que os nacionais ‘nada fazem, mandam os expatriados fazer tudo’. A confirmar-se, esta sensação faria sentido: tratar-se-ia de um caso daquilo a que os economistas chamam dutch disease (’maldição dos recursos naturais’); as rendas petrolíferas, generosamente distribuídas pelos nacionais sob a forma de transferências financeiras ou apoios em espécie, aumentam de tal modo o seu salário de reserva que estes não podem ser competitivamente empregados. Uma visita à mais prestigiada escola de gestão do emirado pôs a nu estes contrastes: o corpo docente, todo doutorado, é integralmente composto de expatriados (sobretudo do Médio Oriente, Índia e Austrália), que ensinam uma população estudantil em que pelo menos 2 em cada 3 são emiratis, que maioritariamente já trabalham, mesmo na licenciatura, em bem remunerados postos públicos.
  4. O governo dos Emirados tem uma estratégia de diversificação da economia, visando reduzir a dependência do petróleo (cujas exportações ainda valem 30% do produto), transformando-a numa economia baseada na tecnologia, no conhecimento e na mão-de-obra qualificada. Esta estratégia explica a existência de 120 instituições de ensino superior, entre as quais muitos nomes prestigiados da cena académica internacional. Por exemplo, a ‘Estratégia dos EAU para Inteligência Artificial’ lançada em 2017, contempla um programa nacional de formação especializada avançada facilitada (sem surpresa!) pela Universidade de Birmingham. Só o futuro dirá se as instituições, em particular a dualidade do mercado de trabalho que descrevemos e o sistema de incentivos que gera, são compatíveis com o sucesso desejado.