Felizmente há luar!

Querida avó, Finalmente tive oportunidade de ir ver a peça Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro. Tens-me falado tanto desta ser uma peça fundamental do teatro português do século XX, que assim que soube que iria estar em cena no Palco de Teatro São Luiz, em Lisboa, não hesitei em ir vê-la. Gostei…

Querida avó, Finalmente tive oportunidade de ir ver a peça Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro. Tens-me falado tanto desta ser uma peça fundamental do teatro português do século XX, que assim que soube que iria estar em cena no Palco de Teatro São Luiz, em Lisboa, não hesitei em ir vê-la. Gostei imenso. Vem no seguimento dos temas que temos abordado nas últimas cartas. Retrata a resistência contra a ditadura do Estado Novo e a censura cultural. Inspirada na conspiração de Gomes Freire de Andrade contra a dominação inglesa, na primeira metade do século XIX, faz uma alegoria à ditadura salazarista, apresentando questões universais sobre liberdade, poder, coragem e resistência. É, sem sombra de dúvida, um testemunho intemporal da luta do povo português pela liberdade e justiça. Ver se na próxima Feira do Livro consigo encontrar o livro Felizmente Há Luar! e o Angústia para o Jantar, ambos do mesmo autor. Embora o livro tenha pouco significado para Luís Sttau Monteiro: «Eu sou um homem para quem só conta o espetáculo». Como sabes preocupo-me muito contigo. Estás aí a “esplanadar” na belíssima Ericeira, dás conversa a toda a gente, mas tens que ter cuidado com o que dizes! Já te cruzaste com o Óscar “Tortura” Cardoso, um rapagão, da tua geração, que também é “jagoz”? Deu uma grande entrevista a um jornal diário onde desvaloriza a tortura: «As pessoas não foram torturadas pela PIDE, as pessoas foram chateadas pela PIDE»… A sério? Afinal, a Ericeira não é apenas um destino de eleição para nómadas digitais, para surfistas, para velhinhos que procuram descansar à beira-mar, nem para netos betos. A Ericeira tem tudo, só não tem comparação… Bjs

Querido neto,

Como bem sabes, sempre tive uma grande admiração pelo Luís Sttau Monteiro, com quem trabalhei e de quem fui amiga. Não imaginas o que me aconteceu, recentemente, na esplanada da Praia do Sul, onde estou diariamente logo pela manhã.

Depois de tomar o meu café começo a ler o Correio da Manhã, que é o jornal que a praia recebe logo de manhãzinha. Nesse dia também trazia uma revista. Olho para a capa e tenho a vaga sensação de que já vi aquele homem que lá aparece.

Não pensei muito nisso, e começo a ler a entrevista com ele, que ocupa uma data de páginas da revista. Uma grande entrevista, feita pela jornalista Marta Martins Silva.

Nisto, folheando a revista, ia caindo para o lado.

Porque o simpático Sr. Cardoso, que às vezes por aqui passa, é…segura-te bem!… o último inspetor da Pide vivo.

Tem as paredes da casa todas cobertas com retratos de Salazar que, evidentemente, foi o melhor homem que ele conheceu. Marcelo Caetano foi um fraco e Spínola um vaidoso. O que era preciso para se ser admitido na Pide? Nenhum curso, mas sim, «aquele dom, aquela habilidade, um instinto, um jeito». E para fazer falar os presos? «Ah, para isso fazíamos umas brincadeiras, mas nada de torturas, isso nunca». Conta que às vezes, para ver se eles contavam mais depressa, deitavam fogo a um papel, e punham-no em cima da cabeça do preso que ficava muito aflito. «Só lhe ardiam uns cabelos, ora diga-me lá se isto era tortura? Claro que não!».

Também trabalhou em África e na Guiné, mas não gostou muito. «Só havia uma coisa boa: não precisávamos de lhes dar comida porque eles gostavam muito da comida que lá arranjavam: caracóis e larvas». Imagina se não temos a missão de falar da importância da liberdade e da conquista da democracia!

E fico-me por aqui – embora a entrevista continue.

E só tenho uma pergunta: como é que ainda existem pessoas assim?!

Vou ver o luar.

Bjs