O massacre de Lisboa em 1506 constituiu um evento trágico que durou três dias, ocorrendo entre 19 e 21 de abril daquele ano. Durante esse período, a população da cidade revoltou-se, direcionando a sua ira contra os cristãos-novos, ou seja, os judeus. As casas foram invadidas e as pessoas foram arrastadas para as ruas, onde enfrentaram tortura, desmembramento e queima. Estima-se que mais de três mil pessoas tenham perdido a vida nesse terrível episódio.
A Comunidade Israelita do Porto decidiu marcar a data com o lançamento de um filme documental intitulado de 1506 – O Genocídio de Lisboa, dirigido por Luís Ismael e produzido pela LightBox. O filme foi disponibilizado online gratuitamente em cinco idiomas: português, hebraico, inglês, francês e castelhano, a partir das 23h59 do dia 18 de abril, no canal de Youtube da CIP. Além disso, ocorreram antestreias com debate em várias cidades no mundo inteiro.
O massacre foi um evento extremamente violento e irracional, desencadeado por um incidente aparentemente insignificante na Igreja de São Domingos. «Surgiu um fenómeno luminoso que as pessoas interpretaram como um milagre, levando uma multidão a reunir-se na igreja para testemunhar o evento. No dia 19 de abril de 1506, a igreja estava praticamente cheia quando uma luz brilhou no crucifixo, gerando jubilação entre os presentes», começa por explicar Susana Bastos Mateus, historiadora que integra a Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, da Universidade de Lisboa, e fez a revisão do guião do filme. «No entanto, um cristão-novo contestou a natureza do fenómeno, afirmando que era apenas o reflexo de uma das velas acesas. Essa discordância foi o combustível para a violência: o homem foi arrastado para fora e morto. A partir desse momento, a multidão desencadeou uma onda de violência que não cessou», sublinha.
A violência espalhou-se rapidamente, resultando num grande número de mortes e causando um impacto significativo em toda a Europa. Devido às diversas fontes da época, que apontam números distintos de óbitos, só se pode fazer uma estimativa dos mesmos. «Pelo menos 2 mil pessoas perderam a vida, mas é provável que o número de mortos esteja mais próximo dos 4 mil. O Rei foi alertado e enviou autoridades civis e militares para controlar a violência, mas só conseguiram fazê-lo ao final do terceiro dia», explica Susana Bastos Mateus, autora da obra O Massacre dos Judeus Lisboa, 19 de Abril de 1506 juntamente com Paulo Mendes Pinto, adiantando que «o massacre foi documentado em várias crónicas escritas por testemunhas oculares, em correspondências de mercadores e em normativas régias que procuravam punir os culpados».
De facto, durante cerca de 72 horas, multidões em Lisboa saíram às ruas, incitadas por um frade dominicano que prometeu 100 dias de indulgência a quem matasse os ‘hereges’. Esse evento ocorreu como consequência do decreto real de 1496, que resultou na pilhagem, violação e assassinato de cristãos recém-convertidos. O Rei D. Manuel só conseguiu restaurar a ordem enviando tropas reais. Os principais responsáveis pelo massacre tiveram os seus bens confiscados e o frade dominicano foi condenado à morte. Em 1496, um édito real de D. Manuel I ordenara que os judeus e muçulmanos deixassem Portugal ou se convertessem ao cristianismo. Muitos optaram pela conversão por motivos económicos ou outros e passaram a ser conhecidos como cristãos-novos. Os judeus, que antes ocupavam posições sociais importantes, tornaram-se alvos da ira popular. Após a chegada de milhares de judeus expulsos de Castela no final do século XV, D. Manuel I emitiu um édito com o mesmo propósito em 1496, resultando na expulsão ou conversão daqueles que não eram cristãos.
O filme documental procura retratar de forma fiel os eventos históricos, destacando a brutalidade e o contexto social da época. «Massacres e tentativas de extermínio do povo judeu existiram muitas, culminando, infelizmente, em trágicos acontecimentos, bárbaros acontecimentos», começa por dizer Isaac Assor, líder da comunidade judaica de Portugal e CEO da Alegretur. «Na verdade, este filme também não aparece em vácuo. Tal como disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que o 7 de outubro não aparece em vácuo. Depois do Holocausto, o dia 7 de outubro foi aquele em que mais judeus foram assassinados. Leva-nos a pensar e a refletir acerca das razões de tanto ódio e de tanta perseguição que o povo judeu, o povo de Israel, tem tido ao longo das gerações», frisa. «As religiões nunca poderão ser motivo de morte. Têm de ser um instrumento da paz e pela paz e nunca uma ferramenta a ser utilizada para radicalizar, para instrumentalizar populações, pessoas, partidos políticos», realça Isaac Assor.
A produção do filme enfrentou desafios significativos na recriação da Lisboa do século XVI, recorrendo a locais históricos e tecnologia para recriar o ambiente da cidade naquele século. Era crucial encontrar um lugar que capturasse fielmente a atmosfera de Lisboa no século XVI, e as Aldeias Históricas de Portugal destacaram Sortelha – no município do Sabugal, distrito da Guarda – como uma escolha ideal para as filmagens. A aldeia foi selecionada devido à sua aparência urbana e arquitetónica, que permanece praticamente inalterada desde o Renascimento até aos dias atuais.
O filme não apenas retrata os eventos violentos, mas também explora as causas e as consequências do massacre, destacando a intolerância e a violência que marcaram esse período da História europeia. Por meio deste filme, a Comunidade Israelita do Porto – e Isaac Assor e Susana Bastos Mateus evidenciam este objetivo primordial – espera não apenas lembrar as vítimas do massacre, mas também alertar para os perigos do antissemitismo e da intolerância religiosa, que continuam a ser uma preocupação em todo o mundo até aos dias de hoje, como foi possível percecionar através do fatídico dia 7 de outubro de 2023.