Henri Delaunay. Dois dentes partidos e um sonho por cumprir

Quis ser árbitro, depois de ter jogado pelo Paris Étoile des Deux Lacs. Correu-lhe mal: uma bola bateu-lhe violentamente na cara, quase engoliu o apito e ficou com marcas na dentadura. Passou a dirigente e idealizou a Taça das Nações que se transformou em Campeonato da Europa.

Taça Henri Delaunay: oito quilogramas de prata esterlina banhados a suor de tanta gente ilustre ou menos ilustre. «E quem é esse tal de Henri?», perguntarão alguns de vós com toda a propriedade. Eu conto, eu conto! É para isso que aqui estou, para vos servir em matéria de prosa, se possível com prosódia. Aviso que foi um homem cuja cabeça podia ter sido uma bola de futebol, tal a paixão que desde garoto (nasceu em Paris a 15 de Junho de 1883) devotou ao jogo inventado pelos ingleses. Bem cedo calçou as chuteiras e defendeu as cores rubras de um pequenino clube parisiense com um nome romântico: Étoile des Deux Lacs. O Étoile tinha ligações a uma forte educação religiosa. Utilizava as instalações desportivas da l’église Saint-Honoré-d’Eylau do 16éme arrondissement de Paris e o seu grande impulsionador foi o abade Biron, um homem que viria a ter grande importância na decisão de Henri em tornar-se dirigente. Mas, entretanto, a juventude atirava-o para dentro do campo onde dava largas à sua liberdade. De um momento para o outro, mudou de ideias. Era um inquieto. Passo seguinte: a arbitragem. Conhecia as regras como ninguém e era respeitado pelos jogadores. Talvez não por um deles, o que acabou com a sua carreira, fosse por malvadez ou por ser simplesmente desastrado, é matéria que a História engoliu e não volta a revelar. O episódio deu-se quando Henri dirigia um encontro entre o AF Garenne-Doves e o ES Benevolence. Assim, à queima-roupa, alguém chutou uma bola com tanta violência que o fez engolir o apito juntamente com dois dos incisivos. Perdeu os sentidos, recompôs-se, mas mandou às urtigas a arbitragem. Decididamente não estava para aturar mais coisas como essa.

O abade Biron ficara velho e também farto de dirigir o Étoile des Deux Lacs. Chamou Henri e ofereceu-lhe o lugar, algo que ele aceitou de bom grado. Tornava-se dirigente, seria dirigente até ao fim da sua vida, foi como dirigente que entrou pela porta grande do futebol do mundo.

Uma ideia fixa

Estávamos em 1905. Henri Delaunay não tardou a receber novo convite, este bastante mais honroso: assumir o cargo de secretário-geral do Comité Français Interfédéral, a organização que antecedeu a Federação Francesa de Futebol. Como membro da FIFA, teve igualmente lugar no Comité Geral de 1924 a 1928. Criou amizade com o presidente Jules Rimet, seu compatriota (nasceu no dia 14 de Outubro de 1873 em Theuley, Franche-Comté), e juntos protagonizaram a génese daquele que viria a ser o Campeonato do Mundo de Futebol que teve a sua primeira edição em 1930, no Uruguai, com a Taça Jules Rimet em disputa.

A inquietude de Henri fê-lo pensar muito. Não se sentia verdadeiramente satisfeito por ter sido uma figura secundária em todo esse processo e, basicamente, uma sombra de Jules Rimet. Foi então que criou a ideia fixa de que a Europa poderia, por si só, percorrer o seu caminho em direção a uma competição continental. Haveria, no fundo dos seus sonhos, uma taça com o seu nome à espera de ser erguida.

Já desde 1920 que propusera a fundação de uma prova que pusesse em competição os campeões nacionais dos países europeus. Como todas as suas ideias, também essa teve de esperar pelo apoio inequívoco do jornal L’Équipe, o organizador das duas primeiras Taças dos Clubes Campeões Europeus. Voltou a juntar-se com Jules Rimet, que atingira um prestígio internacional impressionante, para obter o seu apoio para avançar com o que chamou de Taça da Europa das Nações. Para verem o tamanho da sua teimosia e a firmeza da sua paciência, reparem que o nome foi registado em 1927. Só em 1960, a bola começaria a correr pelos relvados abrindo uma rivalidade interna entre as equipas nacionais europeias.

Henri tornou-se presidente da Union des Associations Européennes de Football (UEFA) no dia 15 de Junho de 1954, data da sua fundação. O caminho estava aberto para que o_Campeonato da Europa, como popularmente se chama, viesse a conhecer a luz do dia. Como prémio para o vencedor, concebeu um imponente troféu e entregou a responsabilidade da sua realização ao seu filho Pierre Delaunay. Composto totalmente em prata esterlina começou por pesar seis quilos, possuindo um plinto de mármore onde se afixavam as placas com os nomes dos países vencedores mas, a partir de 2008, foi remodelado e o atual pesa oito quilos e o plinto foi retirado passando os nomes dos que a conquistaram a serem registados na parte de trás. Também cresceu 14 centímetros em relação ao original. De certa forma, Henri Delaunay cumpria o seu Destino. Infelizmente e para sua profunda tristeza nunca viu nenhum capitão levantá-la com honra e glória.

Morreu no dia 9 de Novembro de 1955 e foi substituído em todas as funções pelo filho Pierre. Pode ter cumprido o Destino, mas não cumpriu o sonho.