A sua imagem de marca é o ouro que ostenta ao pescoço e nos pulsos, mas nada lhe caiu do céu: há mais de 35 anos que está à frente da casa que comprou ao pai, e durante esses anos todos nunca viu praia. O espaço abriu em 1958 e desde então muito mudou. “Nós vivíamos cá dentro da carvoaria. Havia a parte do carvão, a parte do balcão que vendia copos de vinho, que era o forte do meu pai – vendia mais de 7000 litros de vinho de pipa por mês. E depois tinha uma parte que era uma salinha onde tinha a cozinha e que serviam os almoços. Por trás disso, tinham o que na altura chamavam chagão, e hoje chamamos terraço, e ao lado tinha habitação. Tanto que eu, como a minha irmã, nasci nesta habitação [e aponta para uma mesa onde estão clientes a almoçar]”.
Foram os primeiros a instalar-se na rua, só muito mais tarde chegou o Germano, “que ao princípio até vendia mais marisco”, e tudo se resumia a um balcão e a mesas para 40 pessoas. Hoje tem capacidade para 400…
“Lembro-me que a casa se chamava Vasco e Minda, JCR”, dizendo, por baixo, vinhos e comidas. Era assim o letreiro. O meu pai escolheu os nomes dos filhos e as iniciais do seu nome: Júlio Conceição Rodrigues”, explica Vasco Rodrigues.
Então de onde surgiu o nome do Menino Júlio dos Caracóis? “Quando o meu pai estava aqui a trabalhar, ele gostava de beber o seu copo de vinho à tarde e já estava assim um bocadinho alegre, e as pessoas, quando falavam para ele, dizendo ‘Ó Júlio’, ele respondia: ‘Ó Júlio não, vê lá como é que falas com o Menino Júlio, que hoje não está muito bem disposto. Foi aí que eu e a minha irmão pegámos num cartão, com desenhos de caracoletas, e escrevemos o Menino Júlio dos Caracóis e assim ficou. Quando comprei a a casa acrescentei Filho do…”.
Os caracóis só entram no cardápio anos mais tarde, e Vasco lembra-se como era no princípio. “Ía apanhá-los para os lados de Sintra. Depois dali começámos a comprar na Malveira. Depois da Malveira começou a haver fornecedores a virem aqui trazer, os caracóis vinham de Santarém. Além disso, eram várias as pessoas que vinham cá vender ao meu pai os caracóis que apanhavam. No princípio, era eu e a minha irmã que os apanhávamos, além de clientes amigos que também iam na brincadeira”.
Magros versus gordos Os verdadeiros apreciadores de caracóis são muito saudosistas e gostam de recordar que no tempo em as cervejarias vendiam os nacionais é que era muito melhor. “O nosso caracol nunca foi tão gordo como é o de Marrocos. Para mim, o mais gostoso era o do Algarve, da zona de Lagos, onde comprámos durante anos. Íamos carregar a Lagos, esse é que era o melhor caracol que havia em Portugal”, sentencia Vasco Rodrigues.
Agora que vende toneladas de caracóis por mês, Vasco explica que os prefere de uma determinada região de Marrocos que o seu fornecedor trata de os arranjar. “Sim, é verdade. O meu pai era o maior vendedor de caracóis e acho que não há nenhum que venda tanto como eu vendo. Mas o negócio nunca mais foi o mesmo desde a covid-19, e temos que juntar a falta de empregados, pois não consigo abrir as salas todas”.
Quanto ao fornecedor, explica: “Tem armazéns em Marrocos, em Espanha e em Portugal tem um no Algarve, uma coisa enorme, e ainda vai fazer outro na Quinta do Conde, que vai ter tudo. Máquina para escolher caracóis, que vai sugar os vazios, marca de ‘caribar’… Este ano há tanto caracol em Marrocos que estou a encomendar ‘crivados’ -, vão para um tapete que tem a medida de um buraco e tudo o que é caracol mais pequeno sai fora e vai para o lixo. E só vem aquela bitola. Pessoalmente prefiro o caracol de uma região onde eles não crescem mais do que a medida que prefiro. Os outros são muito maiores, e agora até vêm gostosos, mas prefiro os médios. O importador, Francisco Conde, vende em todo o Portugal, supermercados, Continentes, etc.”.
Um império de caracol Como já foi dito, Vasco Rodrigues comprou o espaço ao pai há 40 anos, e desde então deu-se uma espécie de milagre de multiplicação das salas. “Sim, depois do espaço inicial, comprei a gráfica que estava paredes meias. Hoje temos várias salas, um espaço para os empregados descansarem entre turnos, o meu escritório, um ginásio, armazéns para guardar toneladas de caracóis e a loiça”, além de uma espécie de museu de caracóis em vidro, garrafas de refrigerantes antigas, duas balanças de pesar carvão e miniaturas de carros e camiões. “Gosto disto”, diz com natural orgulho. Se para o comum dos mortais todo o espaço é o reino do kitch, para Vasco é “um espetáculo”.
Com o sucesso, o restaurante começou a atrair figuras conhecidas, muitas delas estão imortalizadas em fotografias ao lado de Vasco Rodrigues. Se no Algarve tínhamos o Paulo China com os craques da bola, no Filho do Menino Júlio dos Caracóis temos o Vasco com as figuras televisivas e do desporto.
E qual é a maior dificuldade dos dias de hoje, já que não consegue abrir todas as salas, como o fazia antes da covid-19? “Ainda há dois fins de semana estive a fazer caracóis e a chorar o tempo todo”. Mas porquê? “Por ver tanta gente à espera da parte de fora, e eu com várias salas vazias por falta de empregados. Os nervos apoderaram-se de mim, e até houve um senhor, que se identificou como médico, que me veio perguntar por que eu estava a chorar. Sabe que começa a falar-se que não vale a pena vir cá ao sábado e ao domingo porque há mais de 200 pessoas à espera. Não são tantas, mas servimos as que conseguimos. Podem vir à vontade. Mas não conseguir ter as salas todas abertas arrebenta comigo”.
O segredo do sucesso Há muitos anos que Vasco Rodrigues confessa que são muito poucos que conhecem o segredo dos seus caracóis: “A única coisa que posso dizer é que foi um mecânico que disse ao meu pai que havia um produto em Espanha que ficava muito bem nos caracóis. E desde então que não contamos a ninguém o segredo. Os meus empregados podem estar ao meu lado quando estou a cozinhar que não percebem qual é o condimento que coloco e que marca a diferença”. A mulher que o acompanha desde sempre, assim como as duas filhas, embora agora só uma esteja no restaurante, também deve conhecer tal especiaria, que muitos não acreditam que exista. “Problema deles”, diz Vasco.
Sporting em toda a parte Quando entra no Filho do Menino Júlio dos Caracóis, mesmo quem tenha problemas de visão percebe facilmente que estamos perante um adepto ferrenho do Sporting. Nas paredes, e não só, não faltam motivos alusivos ao clube de Alvalade: ele é Vasco equipado a rigor, em fotomontagens, fotografias de craques antigos, e até um enorme leão a separar duas salas. E haverá benfiquistas que se recusem a entrar no ‘estádio’ verde’? “Não, eu até tenho aqui uma fotografia do Eusébio! Antigamente até punha a música do clube que estava a dar na televisão. Havia uma harmonia espetacular. Agora é que não posso, pois tenho muito menos lugares e as pessoas não rodam se estiver a dar futebol na televisão. Embora na final da Taça de Portugal vá pôr o jogo na televisão. Só tivemos um caso desagradável com pessoas que não eram do Sporting. Uma vez, sete indivíduos, todos benfiquistas, sentaram-se aqui nesta mesa [e aponta para o lugar] e havia um miúdo que fazia anos e que era do Sporting. O miúdo pediu ao pai para eu meter a música do Sporting e isto estava tudo cheio. Meto a música do Sporting para o aniversariante e esses sete clientes começam a chamar nomes a todos os presentes: “Filhos da…, cabr…, c. da tua…” ofenderam toda a gente que estava aqui. Só pedi calma aos outros clientes, pois os sete indivíduos são conhecidos por partirem as casas todas onde vão. Até saírem foram sempre a chamar nomes a todos os presentes. Foi a única vez que tivemos problemas com benfiquistas”.
Casamento com caracóis no Brasil A fama dos caracóis já vem de longe, do tempo em que o pai vendeu uns baldes que foram levados, congelados, para um casamento do Brasil. Vasco tem mais histórias para acrescentar: “Tenho um senhor que vem cá todos os anos buscar entre 10/11 baldes para os levar para Espanha. Congela-os, chega lá e depois liga-me quando faz uma patuscada com os amigos. Liga-me só para me dizer que os descongela-os, aquece-os e diz que é a mesma coisa que se os tivesse comido aqui. Se é verdade ou não, não sei. Também tinha um cliente que tinha um restaurante em França e que dizia ao filho: ‘Aguenta aí o restaurante que eu vou a Portugal ao Júlio e já venho’. Apanhava o avião, chegava aqui e comia aos sete, oito, nove pratos, e ia-se embora apanhar o avião para voltar a França”.
As caracoletas assadas entraram na ementa devido à grande procura: “Tinha muitos clientes que vinham aqui comer caracóis e os outros petiscos, e no final pediam por caracoletas assadas. Mas até eram mais os chineses. Por causa disso, decidi começar a fazer e são um sucesso”.
Vasco diz ainda que, por três ou quatro vezes, no inverno pediu caracóis e caracoletas ao seu fornecedor para os cozinhar para doentes oncológicos. “Não sei quem é o médico que os manda cá vir, para eles fazerem hambúrgueres de caracóis, várias receitas com caracóis. Eu cozo os caracóis, e até mais a caracoleta, e eles levam e depois transformam-nos no que entendem. Nunca levei um tostão a ninguém desses que me pediram para fazer, mais as caracoletas, no inverno. Pessoas doentes não consigo. Isso aconteceu-me umas três ou quatro vezes”.
E quanto ao futuro? “Daqui a três ou quatro anos quero reformar-me, mas faço uma casa para vender caracóis só para fora”. Estranha reforma!! Antes disso, quer abrir uma pastelaria numa das imensas salas que agora estão abandonadas. E é esta a história de Vasco, segundo o próprio, que continua a comer três a quatro pratos de caracóis todos os dias, antes de jantar, depois de cozinhar várias vezes oitenta quilos ao mesmo tempo, divididos em quatro enormes tachos.